"A vida é de quem se atreve a viver".


Painel de Athos Bulcão no Teatro Nacional, que está fechado há 7 anos. Enquanto isso, o  GDF quer construir um inconstitucional Museu da Bíblia
A arte salva

Luiz Philippe Torelly (*) –

“Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na terra”. (Hannah Arendt)

Imersos que estamos na maior e mais dramática calamidade sanitária que o país já enfrentou em sua história, o acontecimento que iremos comentar pode parecer menor, desprezível, mas que significa um inaceitável retrocesso humanístico, legal e cultural, para uma cidade que nasceu sob o signo da modernidade.

Desde 2019, o atual governador Ibaneis Rocha, tenta ressuscitar a ideia de construção de um “Museu da Bíblia”, em pleno Eixo Monumental. Primeiro, procurou-se para legitimar a ideia, valer-se de um “rabisco” do arquiteto Oscar Niemeyer. Tal propositura foi rechaçada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo por óbvio. O projeto necessita da presença do arquiteto para seu desenvolvimento e aprovação junto às esferas públicas competentes. Tratava-se de um caso de “psicografia” de uma obra de arquitetura. Não satisfeito, o GDF abandonou a “colaboração” de Niemeyer, morto em 2012, e organizou um concurso público de projetos, cujo edital veio à luz no dia 24 de março passado.

Felizmente, por iniciativa da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), conforme divulgado no último dia 28/3, pelo jornal Correio Braziliense, o Juiz da 7ª Vara da Fazenda Pública do DF, Paulo Afonso Cavichioli Carmona, suspendeu as obras e qualquer outro procedimento administrativo que tenha como objetivo dar seguimento à construção do aludido museu.

Assim que a ideia foi tornada pública, foram inúmeras as críticas de amplos setores da sociedade civil, por uma razão simples e cristalina como água. Desde a primeira Constituição republicana, de 1891, a Igreja e o Estado são instituições segregadas, sendo vedado ao estado colaboração financeira a qualquer título, conforme reza o Art. 19, inciso I:

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Se a questão se cingisse apenas à esfera religiosa, poderíamos pensar que dada as suas convicções, o governador desejasse prestar uma homenagem às sagradas escrituras, embora isso seja proibido pela Constituição Federal.

O que é mais grave, além da inconstitucionalidade da proposta, é que a infraestrutura cultural de Brasília, está sucateada como o caso do Teatro Nacional – fechado há sete anos –, do Museu de Arte de Brasília – com as portas fechadas há mais de uma década – e da Sala Funarte em condições análogas. Por que não restaurar aquilo que está fechado, ao invés de construir novos?

Não são quaisquer edificações. O Teatro Nacional sedia três casas de espetáculos, um foyer utilizado para exposições e outras manifestações artísticas e é um bem tombado em nível federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e é um projeto de Oscar Niemeyer.

Ademais, há outra questão gravíssima. Brasília não tem um museu sequer à altura do seu significado como capital do Brasil, uma das grandes manifestações culturais mundiais do século XX, reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco em 1987. É um paradoxo que uma cidade que foi criada tendo como signo a integração de arte e arquitetura, não tenha um espaço para expor ao público morador e visitante, uma mostra da produção intelectual, artística e cultural de um país como o Brasil, com 212 milhões de habitantes.

Em artigo anterior sobre o tema (leia aqui), destaquei aqui neste site que existe confinado em instituições públicas, sem acesso público, um acervo de altíssima qualidade de objetos de arte, tais como quadros, esculturas, tapeçarias, documentos, mapas, que poderiam constituir um museu público de alta qualidade. As obras pertencem, entre outros, aos bancos do Brasil, Central, Caixa Econômica Federal; Itamaraty, Palácio do Planalto, Câmara e Senado. Não se propõe que as mesmas sejam doadas. Apenas emprestadas por determinados períodos para serem exibidas ao público.

Lugares para abrigá-las não faltam: Museu da República; Centro Cultural do Banco do Brasil; “Foyer” do Teatro Nacional, quando estiver devidamente restaurado. Como todas as instituições se localizam em Brasília, os custos de transporte, seguros e curadoria, seriam reduzidos, propiciando um grande estímulo à vida cultural do Distrito Federal. Podem também ser programadas exposições menores, para percorreram pelas demais cidades do DF, aproximando a arte de populações que ficam marginalizadas dos eventos culturais.

Causa espanto e apreensão a insistência em implementar uma ideia tão anacrônica e estapafúrdia, que no passado e mesmo na atualidade, provocaram tantos conflitos em todo o planeta. Cada igreja cristã já é por princípio, muito mais que um museu da bíblia, é a bíblia viva conferindo vida aos preceitos éticos, morais e religiosos presentes nas sagradas escrituras. O abalo da separação entre a religião e o Estado é um retrocesso civilizatório. Bastam os que na atualidade causam a morte e o sofrimento dos brasileiros.
_____________
(*) Luiz Philippe Torelly é arquiteto, urbanista e ex-diretor do Iphan.

Você não tem direito de postar comentários

Destaques

Mais Artigos