No ano em que se completam 150 anos da primeira república proletária da história, que teve curto período de existência – 18/3 a 18/5/1871 –, a professora de literatura comparada da New York University, Kristin Ross, lança seu mais recente livro, Luxo Comunal: O Imaginário Político da Comuna de Paris (em pré-venda pela Autonomia Literária, durante a FLIPEI 2021).
Seria a rebelião de Paris prenúncio das ocupações urbanas atuais? O livro procura tirar o foco das polêmicas entre anarquistas e marxistas para jogar luz sobre os notáveis processos de desalienação vividos pelos cidadãos comuns daquela época. Kristin Ross apresenta um estudo das ideias e aspirações que impulsionaram essa revolta histórica.
O editor da Roar, Jerome Roos, conversou com a autora do livro sobre o legado da Comuna, seu impacto no pensamento radical do século XIX e o renascimento do imaginário comunitário em nossos tempos. A entrevista foi publicada no site New Frame e traduzida por Simone Paz.
Eis a entrevista, publicada em português no site Outras Palavras:
A Comuna de Paris vem sendo estudada e discutida há quase um século e meio. De que forma o seu livro contribui para a nossa compreensão deste evento histórico mundial, e por que você decidiu escrevê-lo agora?
Kristin Ross – Como muitas pessoas depois de 2011, fiquei impressionada com a volta — de Oakland a Istambul, ou de Montreal a Madri — de uma estratégia política baseada em aproveitar os espaços, em ocupá-los, tornar públicos lugares que o Estado considerava privados. Militantes do mundo inteiro haviam resgatado, e estavam vivendo no espaço-tempo da ocupação, com todas as mudanças fundamentais que isso implica na vida cotidiana.
Eles viveram a experiência de ter seus próprios bairros transformados em teatros de operações estratégicas, e passaram por uma profunda modificação de sua própria relação afetiva com o espaço urbano.
Meus livros são sempre intervenções em situações específicas. Os acontecimentos contemporâneos me levaram a uma nova reflexão sobre a Comuna de Paris, que para muitos continua sendo uma espécie de paradigma de cidade insurgente. Decidi recontar o que aconteceu em Paris na primavera de 1871, quando artesãos e comunistas, trabalhadores e anarquistas tomaram a cidade e organizaram suas vidas de acordo com princípios de associação e federação.
Embora muito tenha se escrito sobre as manobras militares e disputas legislativas dos communards, eu queria revisitar as invenções dos insurgentes, de tal forma que alguns dos problemas e objetivos mais urgentes da atualidade pudessem emergir de maneira mais vívida. A necessidade, por exemplo, de remodelar uma conjuntura internacionalista, ou a situação da arte e dos artistas, o futuro do trabalho e da educação, a forma comunal e sua relação com a teoria e a prática ecológicas: essas eram minhas preocupações.
A Comuna de Paris sempre foi uma referência muito importante para a esquerda, mas agora a novidade é, em parte, todo o contexto político pós-1989 e o colapso do “socialismo real” — que levou para o túmulo todo um imaginário político. Em meu livro, a Comuna de Paris ressurge livre dessa historiografia e oferece uma alternativa clara ao centralismo do Estado socialista. Ao mesmo tempo, a meu ver, a Comuna nunca se encaixou facilmente no papel que a história nacional francesa tenta lhe atribuir, querendo fazer com que ela desempenhe uma espécie de sequência radical ao estabelecimento da República. Ao libertar a Comuna das duas histórias que a instrumentalizam, tive certeza de que poderíamos percebê-la novamente como um laboratório de invenção política.
Luxo Comunal não é uma história sobre a Comuna de Paris, nem um trabalho de teoria política no sentido comum do termo. Historiadores e cientistas políticos são responsáveis pela maior parte da vasta literatura gerada sobre a Comuna e, no caso destes últimos — sejam eles comunistas, anarquistas ou filósofos como Alain Badiou — isso significa abordar o evento da perspectiva de um teoria formulada. As ações dos communards tornam-se dados empíricos organizados com o fim de respaldar a teoria apresentada, como se o mundo material fosse uma espécie de manifestação local do abstrato, e não o contrário.
Para mim, isso equivale a convocar os pobres communards desde seus túmulos, só para dar certa importância e peso a uma teoria filosófica. Em vez disso, o que fiz foi mergulhar por vários anos nas narrativas produzidas pelos próprios comunnards e por alguns de seus companheiros de viagem da época. Observei com atenção não só o que fizeram, mas o que pensavam e diziam sobre o que estavam fazendo, as palavras que usaram, batalharam, importaram do passado ou de regiões distantes, e as palavras que descartaram.
Essas narrativas sobre sua luta — e temos sorte de tantos comunnards letrados terem optado por escrever alguma coisa a respeito de suas experiências — já são documentos altamente teóricos. Mas eles tendem a não ser vistos assim pelos teóricos políticos. É por isso que fiz tão pouco uso da teoria política existente sobre a Comuna e por que, no final, considero os teóricos políticos a ruína de nossa existência, na medida em que abordam instâncias de insurreição política da perspectiva de uma visão abrangente que tenta unificá-las sob um único conceito, teoria ou narrativa de progressão histórica. Não acho sensato considerar os acontecimentos históricos desde uma perspectiva onisciente, nem do ponto de vista proporcionado pelo nosso presente, farto e complacente com toda sua sabedoria de “motorista de banco traseiro”, corrigindo os erros do passado.
Eu ignorei todos os inúmeros comentários e análises da Comuna, muitos dos quais — inclusive aqueles escritos por pessoas simpáticas à memória do movimento — consistem apenas em tentar adivinhar ou listar seus erros. Tive que realizar uma grande limpeza do terreno a fim de construir a fenomenologia distinta do evento e visualizá-lo fora das múltiplas projeções colocadas nele pelos historiadores. É o acontecimento e seus excessos que nos ensinam como considerá-lo, como pensar e como falar sobre ele.
E uma vez que você presta esse tipo de atenção aos trabalhadores como pensadores — uma atenção que aprendi quando encontrei e traduzi alguns dos primeiros trabalhos de Jacques Rancière — você não consegue mais voltar a contar a história do jeito antigo. Do jeito, por exemplo, que foi contada pelas duas tradições que controlaram sua narrativa por tanto tempo: de um lado, a da historiografia oficial comunista; e do outro, a da ficção nacional francesa. Você precisa reformular e reconfigurar essas experiências passadas para torná-las significativas em seus próprios termos e torná-las visíveis para nós agora, no presente.
Ao focar nas palavras e na ação de indivíduos concretos, que agiam em conjunto para desmantelar, pouco a pouco e passo a passo, as hierarquias sociais que constituem a burocracia de um Estado, tentei pensar a Comuna historicamente — como pertencente ao passado, como morta e enterrada — e, ao mesmo tempo, como a figuração de um futuro possível. Tentei encená-la como parte de sua própria era histórica, mas de uma forma em que excedesse sua história e nos sugerisse, talvez, demandas mais profundas e duradouras pela democracia e revolução mundiais.
O livro é a minha forma de reabrir, em outras palavras, do centro de nossas lutas atuais, a possibilidade de uma historiografia diferente, que nos permita pensar e fazer política de forma diferente. A Comuna nos oferece uma alternativa diferente ao curso seguido pela modernização capitalista, por um lado; e àquele seguido pelo socialismo de Estado utilitarista, por outro. Este é um projeto que eu acho que compartilhamos cada vez entre mais pessoas e é por isso que escrevi o livro.
Ao escolher focar na vida pós-Comuna mais do que nos 72 dias de “sua própria existência de trabalho”, você consegue desenterrar as inúmeras maneiras pelas quais o imaginário político da Comuna realmente sobreviveu ao massacre e permaneceu nas lutas e no pensamento dos ex-communards e de seus contemporâneos. Qual você considera ser o legado mais importante da Comuna a esse respeito?
Eu não me dediquei tanto à “vida pós-morte” da Comuna, como à sua sobrevivência. Em um de meus livros anteriores, May’68 and Its Afterlives (Maio de 68 e Sua vida póstuma), o assunto era, de fato, como o título sugere, algo similar a um estudo de memória: como as insurreições de 1968 foram representadas e discutidas dez, vinte ou trinta anos depois. E, hoje, um trabalho muito interessante está sendo escrito pelo que alguns optam por ver como as “vidas póstumas” ou “reativações” da Comuna de Paris: estudos da Comuna de Xangai, por exemplo, ou outros aspectos da Revolução Cultural chinesa, ou estudos que enxergam os zapatistas como uma espécie de reativação de certos gestos de 1871.
No entanto, Luxo Comunal limita-se ao tempo de vida dos communards, e é centrífugo ou geográfico em seu alcance. Eu examino as ondas de choque do evento quando elas alcançam Kropotkin na Finlândia ou William Morris na Islândia, ou quando elas conduzem os tão pressionados communards exilados e refugiados para novas redes políticas de longo alcance e novos modos de vida na Suíça, Londres e em outros lugares, após o massacre que deu fim à Comuna. O extremismo e horror desse final, a Semana Sangrenta de violência estatal que levou milhares de pessoas à morte, muitas vezes se mostrou uma isca incontrolável, que tornava invisíveis as redes e caminhos de sobrevivência, reinvenção e transmissão política que surgiram nos anos imediatamente posteriores, e isso me preocupa muito na última parte do livro.
Há quase que um desejo por parte dos historiadores de reduzir todo o evento a um episódio de 72 dias que termina em tragédia. Nesse sentido, eu queria examinar o prolongamento do pensamento dos communards para além da carnificina sangrenta nas ruas de Paris, o que resultou do encontro dos exilados com seus partidários na Inglaterra e nas montanhas da Suíça. Ao fazer isso, é claro, concordo plenamente com Henri Lefebvre, que nos diz que o pensamento e a teoria de um movimento são gerados apenas após seu próprio fim. As lutas criam novas formas políticas e modos de fazer, bem como novos entendimentos teóricos dessas práticas e formas.
Em certo ponto, você poderia argumentar que são as formas assumidas por essa sobrevivência — uma “sobrevida”, ou, em francês, “survie” — que constituem o legado mais importante da Comuna: o fato de sua própria “existência de trabalho” ter se perpetuado, a recusa por parte dos sobreviventes e de seus partidários de permitir que a catástrofe do massacre acabasse com tudo.
Em um nível mais simbólico, porém, o legado que o pensamento gerado pela Comuna deixou emerge em meu livro, no conjunto de significados atribuídos ao título que escolhi: “luxo comunal”. Descobri essa frase no parágrafo final do Manifesto que Eugène Pottier, Courbet e outros artistas escreveram quando estavam se organizando durante a Comuna. Para eles, a frase expressava uma demanda por algo como a beleza pública — a ideia de que todos têm o direito de viver e trabalhar em circunstâncias agradáveis, a exigência de que a arte e a beleza não sejam reservadas ao gozo da elite, mas que sejam plenamente integradas à vida pública cotidiana.
Esta poderia parecer uma exigência meramente “decorativa” por parte de artistas e artesãos caprichosos, mas é uma exigência que de fato exige nada menos do que a reinvenção total daquilo que é considerado riqueza, do que uma sociedade valoriza. É um apelo à reinvenção da riqueza para além do valor de troca. E no trabalho de refugiados da Comuna, como Elisée Reclus e Paul Lafargue, ou de companheiros de viagem como Peter Kropotkin e William Morris, o que eu chamo de “luxo comunal” foi expandido para uma visão de sociedade humana ecologicamente viável. É impressionante ver o trabalho de Reclus, Lafargue e seus amigos, agora no centro das atenções dos teóricos ecológicos que encontram ali um nível de pensamento ambiental que morreu com aquela geração, no final do século XIX, e não foi ressuscitado até a década de 1970, com figuras como Murray Bookchin.
Todo esse trabalho é muito empolgante, mas falha ao não levar em consideração como a experiência da Comuna foi parte fundamental da perspectiva ecológica que desenvolveram. A experiência da Comuna e sua brutal repressão tornaram tal análise ainda mais difícil. Para eles, o capitalismo já era um sistema imprudente, de desperdício, que causava a degradação ecológica do planeta. As raízes da crise ecológica estavam no Estado-nação centralizado e no sistema econômico capitalista. E eles acreditavam que um problema sistêmico exige uma solução sistêmica.
Dando continuidade à pergunta anterior, você enfatiza particularmente o profundo impacto da Comuna no pensamento de Marx na época. Você poderia discutir brevemente como os eventos de 1871 ensinaram, mudaram ou aprofundaram a compreensão de Marx sobre o desenvolvimento capitalista e a transição para uma sociedade pós-capitalista?
Marx sabia tudo o que era possível saber sobre o que estava acontecendo nas ruas de Paris naquela primavera — dada a distância e um verdadeiro muro de censura, “uma Muralha da China de mentiras”, montada pelos versalheses para evitar que as informações chegassem aos franceses no campo e também aos estrangeiros. Ele olhou para a Comuna e ficou surpreso ao ver, pela primeira vez em sua vida, um exemplo vivo de vida não capitalista jamais antes escrita nos livros — o oposto do dia a dia sob o domínio do Estado. Pela primeira vez, ele viu pessoas realmente se comportando como se fossem donas de suas vidas e não escravas assalariadas.
Em Luxo Comunal, mapeio as profundas mudanças que a existência da Comuna trouxe ao pensamento de Marx e, ainda mais importante, à sua trilha: a nova atenção que ele prestou — na década seguinte à Comuna — às questões camponesas, ao mundo fora da Europa, às sociedades pré-capitalistas, e à possibilidade de múltiplos caminhos para o socialismo. Observar, pela primeira vez, como era o trabalho não-alienado realmente teve o efeito paradoxal de fortalecer a teoria de Marx e de causar uma ruptura com o próprio conceito de teoria.
Mas devo dizer que estou menos preocupada em relacionar a Comuna às trajetórias intelectuais de Marx ou à de alguns outros conhecidos que discuto no livro, do que em costurar o pensamento, as práticas e as trajetórias de contemporâneos como Kropotkin, Marx, Reclus e Morris, do sapateiro Gaillard e de outras figuras menos conhecidas, na teia relacional que o evento produziu — uma espécie de “globalização vinda de baixo”.
Com o despertar da Comuna, o imaginário socialista foi alimentado não apenas pela recente insurreição, mas por elementos que envolviam a Islândia medieval, o potencial comunista das antigas comunas rurais de camponeses russos e de outros lugares, o início do anarco-comunismo e um repensar profundo sobre a solidariedade a partir do que hoje chamaríamos de perspectiva ecológica.
Você aponta como a Comuna era realmente um projeto compartilhado, que “evaporou as divergências entre facções de esquerda”. Da mesma forma, você mesma não tem paciência para disputas sectárias que superenfatizam a divisão entre Marx e Bakunin, ou entre comunismo e anarquismo, na esteira da insurreição. O que a Comuna tinha, que permitiu que essas várias tendências encontrassem uma causa comum, e o que a esquerda deve tirar dessa experiência hoje — se é que existe esse algo?
A vida é muito curta para ficar no sectarismo. Não que o sectarismo não existisse na Comuna ou em seu caminho. Na verdade, nos anos imediatamente após a Comuna, a esquerda costuma ser vista como ferozmente dividida pela disputa entre Marx e Bakunin — uma disputa entre marxistas e anarquistas que é considerada responsável pelo fim da Primeira Internacional, e uma disputa que é frequentemente retomada hoje em dia, entre aqueles que acreditam que a exploração econômica é a raiz de todo o mal e aqueles que acreditam que é a opressão política.
O que eu escolhi fazer em meu livro foi empurrar para fora do palco o Marx e o Bakunin, esses dois velhos barbas-cinzas, cuja briga todos nós conhecemos há tanto tempo; ou, pelo menos, tentar colocá-los no canto, para entender o que mais havia para ser visto. E o que descobri foi uma grande quantidade de pessoas muito interessantes que não eram nem servilmente leais ao marxismo, nem ao anarquismo, mas que fizeram uso habilidoso de ambos os conjuntos de ideias.
Isso me parece muito semelhante à maneira como os militantes de hoje conduzem suas vidas políticas, talvez porque alguns dos tipos mais sectários de cada lado tenham saído de cena. Mesmo assim, meu livro teve sua cota de ataques sectários — por uso insuficiente da linha marxista e da linha anarquista, em quantidades quase iguais!
Muitos movimentos contemporâneos parecem remeter ao espírito da Comuna em suas próprias lutas. Você diria que estamos vivendo um renascimento do imaginário comunal, atualmente? Como você explica o retorno das estratégias políticas baseadas na ocupação e esse renovado interesse pela política do espaço urbano?
Acho que há claramente um renascimento do imaginário comunitário na atualidade, mas não concordo com você no fato de ele estar centrado na política do espaço urbano. A cidade hoje oferece aos jovens três opções: não ter trabalho, ter um trabalho mal pago ou um trabalho sem sentido.
Muitos optaram por se mudar para o campo para levar uma vida que una luta e cooperação social. Quando penso nas várias lutas da atualidade, principalmente na França, que é o contexto que conheço melhor, elas muitas vezes ocorrem no meio rural e se preocupam em defender um modo de vida considerado “arcaico” para a modernização capitalista. Os ocupantes procuram criar uma forma de autossuficiência regional que não implique recuar para um mundo fechado em si mesmo, que não se reduza a redemoinhos isolados de autorreferencialidade.
Este é um desejo que emergiu com muita força, aliás, no período que se seguiu à Comuna, e discuto longamente os muitos debates interessantes que abordaram esse assunto e ocorreram nas montanhas do Jura, na Suíça, entre refugiados e apoiadores, muito conscientes dos perigos do isolamento. Pelo que sei das ocupações comunais de territórios e terrenos na atualidade, ocupantes e Zadistas [Defensores de territórios ameaçados pelo capital, que agem frequentemente por meio de ocupações. O termo origina-se do acrônimo francês ZaD, de “Zone a deffendre”, ou “zona a defender” (Nota de Outras Palavras)] reivindicam uma certa linhagem não apenas com a Comuna de Paris, mas com lutas mais recentes, como o Larzac na década de 1970, e figuras importantes daquela época como Bernard Lambert. Afinal, foi Lambert quem subiu ao planalto de Larzac em 1973 e proclamou que “nunca mais os camponeses estarão do lado de Versalhes”, às milhares de pessoas que viajaram de toda a França e além, para apoiar os camponeses e fazendeiros locais em sua luta contra a expulsão de suas próprias terras pelo exército francês.
Quando Lambert, em seu texto clássico, Les Paysans dans la lutte des classes (Os camponeses na luta de classes), situou trabalhadores urbanos e camponeses no mesmo patamar em relação à modernidade capitalista, ele estava mobilizando exatamente a mesma estratégia retórica que um dos personagens principais de meu livro, o communard Elisée Reclus, utilizava em seu panfleto de 1899, “À mon frère, le paysan” (“Para meu irmão, o camponês”). Que por sua vez, é a mesma estratégia subjacente a um panfleto ainda anterior, dirigido (mas nunca recebido) aos franceses no campo, da parte dos communards sitiados em abril de 1871, Au Travailleur des campagnes (“Aos trabalhadores do campo”). Para citar Lambert: Paysans, travailleurs, même combat (“Camponeses, operários, a mesma luta”).
Hoje, a existência de ZADs — “zonas a defender” — e de comunas como Nôtre-Dame-des-Landes, na França; ou No-TAV [Movimento Popular contra a construção do Trem de Alta Velocidade], em Turim; de assentamentos que ocupam espaços cedidos pelo Estado a grandes infraestruturas de projetos julgados inúteis e forçados, marcam o surgimento de algo como uma vida rural distintamente alternativa e combativa. É uma vida rural que se opõe ao agronegócio, à destruição de terras agrícolas, à privatização da água e de outros recursos e à construção pelo Estado de projetos de infraestrutura em escala faraônica. Vemos aqui um verdadeiro desafio em relação ao Estado. E, ao mesmo tempo, o mundo rural é defendido como um espaço cujas realidades físicas e culturais se opõem à lógica homogeneizante do capital. Ao se recusarem a sair desse lugar, eles se colocam no centro do combate.
A meu ver, a remobilização da forma comunal hoje em dia, procura, em parte, bloquear a constituição em curso de uma rede territorial composta por centros financeiros metropolitanos privilegiados, cujo desenvolvimento tem um preço: a destruição dos laços que ligam esses centros aos seus arredores e periferias. São essas periferias, rurais ou semirrurais por natureza, que estão então destinadas a declinar numa espécie de desertificação prolongada, à medida que o capital financeiro suga cada vez mais pessoal e recursos para meios de transporte cada vez mais rápidos, e para uma escala cada vez maior de comunicação, bens e serviços nos lugares de maior riqueza.
Os militantes de hoje muitas vezes se veem lutando contra uma realidade distintamente nova e neoliberal, mas não acho que importe muito se vemos ou não o neoliberalismo como uma fase diferente do capitalismo — o mundo capitalista ao qual eles se opõem já foi substancialmente analisado por Henri Lefebvre em Production of Space (A Produção do Espaço), um livro que foi lançado, creio eu, no início dos anos 1970. Lá ele mostrou como o crescente “planejamento” do espaço sob o capitalismo era um movimento dividido em três partes: homogeneidade, fragmentação e hierarquia.
A produção da homogeneidade é garantida pela unificação de um sistema global com centros ou pontos de fortalecimento metropolitano que dominam os pontos periféricos mais fracos.
Simultaneamente, porém, o espaço se fragmenta para ser melhor instrumentalizado e apropriado: ele passa a ser dividido feito papel milimetrado em parcelas taylorizadas autônomas com diversas funções localizadas. E uma estratégia cada vez mais consciente e traiçoeira divide todas as zonas rurais e suburbanas, as cidades-satélites, formadas por pequenas e médias cidades, os subúrbios e os espaços desolados pela decomposição da vida agrária — todas essas semi-colônias à metrópole — em regiões mais ou menos favorecidas, com a maioria delas sendo destinada a um declínio controlado, supervisionado de perto e, muitas vezes, abrupto.
Assim como a Comuna de Paris, essas lutas e ocupações contemporâneas são, necessariamente, baseadas de forma local. Elas são vinculadas a um determinado espaço e, como tal, exigem uma escolha política específica. Eles compartilham todas as preocupações e aspirações específicas do local. Mas elas não são localistas nem localizadoras em seus objetivos. Os communards eram ferozmente anti-Estado e amplamente indiferentes à nação — como precisamos lembrar. Sob a Comuna, Paris queria ser uma unidade autônoma em uma federação internacional de comunas.
Nesse quesito, a Comuna antecipou todos os tipos de possibilidades em atos, de modo que mesmo os projetos que ela não poderia realizar, e que permaneceriam no nível do desejo ou da intenção, como o projeto federativo, retêm um significado profundo. Atualmente, as lutas específicas de lugares, como o Nôtre-Dame-des-Landes e o No-TAV, estão muito melhor posicionadas para alcançar o tipo de federação internacional que Paris, sob a Comuna, não teve tempo de realizar.
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Entrevista publicada em português no site Outras Palavras