Luiz Philippe Torelly (*) –
De algumas semanas para cá ressurgiu a polêmica em torno da construção, com dinheiro público, de um museu em Brasília dedicado à Bíblia. A proposta adormeceu nos escaninhos governamentais por quase 30 anos, e voltou com força graças à estratégia política do governador Ibaneis Rocha (MDB) de aproximação com igrejas neopentecostais.
Inicialmente o museu seria construído, a partir de um "croquis" do renomado arquiteto Oscar Niemeyer. Diante do não reconhecimento da autoria, pelo Conselho de Arquitetura de Urbanismo (CAU), a estratégia sofreu uma mudança. O GDF resolveu escolher um projeto por concurso público. Atitude louvável e democrática, mas revela o intuito de "dourar a pílula", isto é, como é inconstitucional desde 1891, utilizar recursos públicos em projetos promovidos por instituições privadas, já que igreja e estado são separados juridicamente, usa-se um subterfúgio para legitimar um vício de origem.
Cidade construída sob a égide da integração entre arte e arquitetura, Brasília se tornou um dos maiores feitos culturais do século XX. Todavia, transcorridos mais de 60 anos de sua inauguração e em decorrência de seu crescimento e transformação em uma metrópole de quatro milhões de habitantes, a cidade tem muitos problemas. Além da segregação espacial e da exclusão social, com pobreza e carência de serviços básicos, a cidade está com sua estrutura cultural sucateada. O Teatro Nacional que abriga três salas de espetáculos, além de um magnífico "foyer", está fechado há sete anos. O Museu de Arte de Brasília, há mais de uma década. Só Deus sabe as condições em que se encontram o seu acervo. O Museu Nacional da República embora em funcionamento, não possui um acervo e uma programação à altura da capital da república.
Esse diagnóstico de descaso com a cultura pátria convive com um paradoxo. Várias instituições públicas federais, com sede em Brasília, possuem excelentes acervos de arte, objetos e documentos nas mais diversas mídias. Banco Central, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Senado e Câmara Federal, UnB, Itamaraty, mantêm trancados longe dos olhos do público, inestimáveis manifestações da arte e da cultura brasileiras.
Como uma cidade do porte e importância de Brasília pode subsistir sem um museu à altura da diversidade cultural do nosso país? Dá para imaginar Paris sem o Louvre, São Paulo sem o MASP, Londres sem o Museu Britânico?
Há alguns anos tenho repetido a proposta que vou reiterar: Temos um acervo de alta qualidade e um edifício que com pequenas adaptações pode recebê-lo: o Museu Nacional da República, na Esplanada dos Ministérios, próximo à catedral. As obras de arte não precisam ser doadas ao novo museu, apenas emprestadas temporariamente, com as normas de segurança e seguridade que tais operações requerem e a facilidade de todas estarem em Brasília. Após alguns meses de exposição, seriam devolvidas aos seus proprietários e substituídas por novas. Os acervos que mencionamos possuem milhares de obras de grande valor artístico e cultural.
Não acredito que a aventura do Museu da Bíblia prospere. Em primeiro lugar por sua ilegalidade e inconstitucionalidade. Em segundo, pelo anacronismo original de sua proposta: cada igreja cristã, já é em si um Museu da Bíblia, pois o livro sagrado é a origem e centro de todos os cultos que acontecem nas igrejas. A Bíblia, o livro mais lido há milhares de anos, o primeiro a ser impresso, não precisa de um museu, mas da observância da palavra divina, capaz de erradicar muitos males que afligem os brasileiros e a humanidade.
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(*) Luiz Philippe Torelly é arquiteto, urbanista e ex-diretor do Iphan.