Angélica Torres -
Crises do passado recente entre povos e multinacionais são exemplos de como lutar contra a ameaça de privatização do Aquífero Guarani, promovida pelo presidente Michel Temer. O tema faz parte dos debates que ocorrerão em Brasília, de 18 a 22 de março, no Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA).
Quando os bolivianos enfrentaram a “Guerra da Água” contra os norte-americanos empenhados na privatização da gestão da água de Cochabamba, não fazíamos ideia de que, 18 anos depois, o mesmo pesadelo poderia ameaçar o Brasil e suas fontes abundantes de riqueza natural.
A perspectiva de que 2/3 do planeta não terão água pura em 2025 provocou o confronto mundial pelo controle do recurso mais básico do planeta. Por isso, lembrar a crise da Bolívia é quase uma obrigação, neste momento em que Michel Temer tem mantido negociações com corporações de olho em nossa água, como Nestlé e Coca Cola, e o assunto é pauta de dois fóruns agendados para daqui duas semanas.
Os eventos vão ocorrer no mesmo período (18 a 22 de março), em Brasília: o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), de luta pela água como direito do povo e em oposição ao outro: o 8º Fórum Mundial das Águas, das grandes corporações e governos que buscam torná-la uma commodity para lucro privado, exatamente como aconteceu com Cochabamba. Lá, a crise começou quando o Banco Mundial declarou que não renovaria um empréstimo de US$ 5 milhões ao país, caso o governo não privatizasse seu serviço de abastecimento de água. Em janeiro de 2000, após a Bechtel Corporation dobrar a cobrança das tarifas, iniciaram-se os protestos populares.
O contrato de concessão do serviço público, firmado pela Bolívia com a multinacional californiana para vigorar por 40 anos, proibia os bolivianos de coletar água do seu próprio país, inclusive a de chuva. Contas de água não pagas davam o direito à empresa de se apropriar da casa do devedor e de leiloá-la. A população tinha de optar entre comer menos, não levar os filhos à escola ou tratar doentes em casa, e não em hospital, para poder pagar a água e os serviços básicos. Idosos com baixas aposentadorias passaram a trabalhar como ambulantes.
Frente a essa realidade, os cidadãos saíram às ruas e protestaram com o lema “A água é do povo, Pô!”. As pessoas queriam água e não gás lacrimogênio. Queriam justiça e não balas. A cidade estava perto de um estado de sítio e a Bolívia determinada a defender o direito da corporação de cobrar pela água cerca de ¼ da renda de famílias que viviam com US$ 2 por dia. Quanto maior a resistência da população à ganância da corporação, mais violento o conflito, que levou centenas de jovens a sofreram mutilações ou lesões cerebrais e Vitor Hugo Daza à morte.
Mesmo defendendo os interesses da Bechtel, o governo não conseguiu convencer os bolivianos de que água é uma commodity como qualquer outra. Em abril do mesmo ano, cedeu à pressão popular, anulou o contrato firmado com a Bechtel, a lei que previa a privatização das águas do país foi revogada e a prefeitura retomou o controle da situação. No entanto, a Bolívia pagou com a privatização de suas indústrias petrolíferas, da companhia aérea e das empresas de energia e telefonia pelos empréstimos do Banco Mundial. Qualquer semelhança com o Brasil, aliás, não é mera coincidência.
Fascismo e poder corporativo
A repercussão da Guerra da Água levou o escritor, roteirista, músico de jazz e professor canadense de Direito, Joel Bakan, a relatá-la em “A Corporação – a busca patológica por lucro e poder” (“The Corporation – the pathological pursuit of profit and power”), livro lançado em 2004, que no mesmo ano ganhou versão cinematográfica com o título de “The Corporation”.
Dirigido por M. Achbar e J. Abbott, o filme conquistou o prêmio de melhor documentário nos festivais de cinema de Sundance e Amsterdam, e recebeu calorosa aceitação de público e crítica ao redor do mundo, pelas denúncias impactantes sobre a longa e sombria história de intolerância e tirania das grandes corporações e sua conexão com as estruturas militarizadas dos regimes fascistas.
“Há percepção de que o fascismo cresceu na Europa com a ajuda de grandes corporações. Empresários adoravam Mussolini e também Hitler, que se livrou dos ‘esquerdistas perigosos’ e controlou os trabalhadores. As oportunidades de investimento cresceram, não havia problemas, são países maravilhosos”, ironiza o filósofo, linguista, professor do MIT e ativista Noam Chomsky, em depoimento ao escritor e à dupla diretora do filme. O cineasta e escritor Michael Moore, outro crítico severo ao capitalismo predador e às corporações, também depõe que todas as histórias não contadas do século 20 foram de conluio e apoio das empresas corporativas, sobretudo norte-americanas, ao nazismo.
“Quando a guerra começou, acharam um modo de manter tudo funcionando; a General Motors manteve a renda do Opala, a Ford manteve suas operações, a IBM criou cartões perfurados para controlar a gestão do tráfego dos judeus perseguidos por Hitler, quando os computadores ainda nem existiam, e a Coca Cola inventou a Fanta Laranja para os alemães, podendo assim manter o seu lucro. Quando você bebe Fanta Laranja é a bebida nazista criada para a Coca continuar faturando, enquanto milhões morriam”, denuncia enfático Michael Moore.
Farsante, o sistema das corporações, sem corpo nem alma, como assombrações, fantasmas, vampiros fazendo seus jogos de lucro, expandiu-se globalmente, levando os governos a perder o controle que ainda podiam ter sobre elas 60 ou 70 anos atrás. Hoje, corporações e governo trocam ideias e trabalham em conjunto e os acionistas não querem que elas decidam o que é socialmente responsável. Cabe a populações afetadas por suas intromissões vigiar e lutar em favor de seus próprios interesses.
Nesse sentido, um depoimento encorajador é o da física e ativista Vandana Shiva sobre a vitória dos indianos que levaram à justiça “o maior governo do planeta” e um dos maiores conglomerados químicos, W.R. Grace, sediado em Maryland, no caso do nim -- planta medicinal e inseticida natural, originária da Índia. A patente dos E.U. sobre o nim foi anulada por uma ação conjunta com os Verdes do Parlamento Europeu e o Movimento Internacional de Agricultura Orgânica.
“Anulamos também 99% da patente do arroz da RiceTec, multinacional de Houston, trabalhando com uma coalizão mundial: idosas no Texas, cientistas na Índia e ativistas em Vancouver (Canadá), e mostramos que piratas eram as corporações”, conta Vandana Shiva.
Filho de um operário de montadoras de automóveis em Michigan, o cineasta Michael Moore pondera, ainda, se a fábrica de carros é motivo para o derretimento da calota polar e para o fim da civilização. “Como indivíduos, temos de ter responsabilidade por nossos atos coletivos e o mal que causam ao mundo. Os corporativos não prestam contas ao processo democrático e é preciso se aproveitar da falha do capitalismo, da cobiça. Não use produtos deles, esse é um nosso poder”, aconselha.
Outros meios de afrontar as corporações são por boicote, educação, litígio, ação direta, legislação e investimento social, alerta Moore. “Eles estão convencidos de que as pessoas, idiotizadas, não deixarão o sofá pela ação política. Pois eu penso o oposto. Alguns sairão do cinema ou terminarão de ler o livro e farão algo por um mundo melhor”, aposta.
O Aquífero Guarani em jogo
E aí está o povo brasileiro a confirmar, menos de duas décadas depois, a projeção otimista do cineasta ativista. A maior parte da população do país está consciente da importância da preservação dos bens que a natureza reserva, sobretudo, ao território que ela privilegia. O golpismo já levou o Brasil à perda do pré-sal e de outros vários recursos para ilícitos interesses estrangeiros, desrespeitando a população e a soberania da nação. Resta ao povo resistir bravamente para que outros tantos não sejam também entregues, de bandeja pau-brasil, às “corporations”, como agora o Aquífero Guarani.
Para se ter ideia do que está em jogo nas mãos do inescrupuloso Michel Temer, o Aquífero Guarani abrange partes dos territórios do Uruguai, Argentina, Paraguai e, principalmente, Brasil, onde ocupa 1,2 milhão de km². O nome foi proposto pelo geólogo uruguaio Danilo Anton, em 1996, quando chegou a ser considerado o maior do mundo, capaz de abastecer a população brasileira por 2.500 anos. Hoje, perde apenas para o Aquífero Alter do Chão, a maior reserva conhecida, localizada sob os estados do Pará, Amapá e Amazonas, com o dobro do seu volume.