"A vida é de quem se atreve a viver".


Lanari: "Pode-se dizer que os filmes de Antonioni são incompreensíveis, assim como a vida é incompreensível".
Michelangelo Antonioni e a potência do frágil

A propósito da retrospectiva completa e exibição de obras raras do cineasta Michelangelo Antonioni, até o dia 29/5, no CCBB Brasília, brasiliarios.com publica aqui texto de João Lanari Bo sobre o cinema do diretor italiano. 

Em uma carta escrita no final da vida, Roland Barthes desliza com a precisão e a fluidez de sempre sobre a obra artística de Antonioni. Para ele, o diretor italiano exibe em seus filmes as três virtudes constitutivas do artista, a saber a vigilância, a sabedoria e a fragilidade.

A vigilância é a virtude de captar a história, não apenas a grande História, mas a pequena história que subjaz no círculo íntimo das existências individuais, aquelas confinadas nas temporalidades particulares. Cada personagem com seu tempo interior, passado vivido e futuro por vir, e o presente irredutível.

Sabedoria é a presteza no discernimento, a capacidade de jamais confundir sentido e verdade.

Trata-se de uma operação delicada: é mais fácil carregar o sentido e produzir um suposto realismo, que satisfaz uma demanda preconcebida da audiência.

Antonioni, ao contrário, deixa sempre aberta a rota do sentido, suas narrativas oscilam sutilmente entre o patético e o insignificante. A incerteza do sentido.

A arte de Antonioni, resume o pensador francês, é a arte do interstício.

E a fragilidade? É a resultante inevitável, a dúvida existencial que assalta o artista “à medida que ele avança na sua vida e na sua obra”.

Exprimir-se é trilhar a linha tênue entre o testemunho do seu tempo, das mudanças do mundo, e o “simples reflexo egotista de sua nostalgia ou do seu desejo”.

O texto de Roland Barthes é tão hábil, tão sintético, que funciona como uma espécie de alegoria para atrair nossa imersão na obra. Seduzidos por essa dialética sutilíssima, somos arrastados para uma filmografia que é, a um só tempo, estimulante e elusiva, ambígua e expressiva.

Confrontado com a hesitação dos personagens, com a dispersão das causalidades que movem a narrativa clássica e produzem a consequente abstração das emoções, o espectador frustra-se, angustia-se, a exemplo do que se passa na tela.

Pode-se dizer, invocando uma dessas acepções banais e verdadeiras, que os filmes de Antonioni são incompreensíveis, assim como a vida é incompreensível.

Como organizar a vida, no plano das mediações individuais que nos deparamos diariamente, com um razoável grau de certeza?

A essa indagação corresponde, para o diretor italiano, como organizar o tempo e espaço dos personagens e seus desdobramentos, com o igualmente razoável grau de certeza? Em ambos, vida e filme, um mistério.

Se o cinema, afinal de contas, é um dispositivo de mediação através das imagens – consumimos audiovisual para dispor de uma instância de identificações e correspondências, que auxiliem, voluntariamente ou não, nossa inserção no mundo – o cinema de Antonioni é a ilustração desse mecanismo, é o ato mesmo de mediar.

Um ato que por definição se exerce de forma errática, incerta, em permanente estado de suspensão. Os personagens, que encarnam essa errância, também têm dificuldade de resolver suas vidas.

Uns morrem, outros simplesmente desaparecem, e alguns fazem sexo compulsivamente.

De novo: confrontados, os espectadores sentem-se abandonados, condenados a uma recepção que acontece, por infelicidade ou não, independente do filme.

Um distanciamento patológico, um sentimento vago e liminarmente ansioso.

Michelangelo Antonioni faleceu em 2007, um dia depois de Ingmar Bergman. Passou anos sem falar, devido a um derrame, mas sempre lúcido e ativo.

No seu último suspiro contemplou o Moisés restaurado do outro Michelangelo, o escultor. Puro cruzamento de olhares, passado e futuro condensados no presente.    

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