Antônio Carlos Queiroz (*) -
Esperei mais de um ano para ver o filme do diretor inglês Terence Davies, “Além das Palavras” (A Quiet Passion), sobre Emily Dickinson, a poeta da Nova Inglaterra, e até fiz propaganda dele – mas que decepção!
Formalmente, o filme é muito bem construído – maneirista, com impecável reconstituição de época e trilha sonora esmerada.
Os atores são ótimos e a atriz principal, Cynthia Nixon, é candidata certeira ao Oscar. Mas o roteiro é escuro, dark. Carrega nas tintas da depressão, da autopiedade, dos pensamentos de beira do abismo, da alma e entranhas atribuladas por dúvidas espirituais sem fim.
Davies nos apresenta uma mulher sofrida demais, reclusa ao extremo, tudo conforme a mitologia que se criou desde quando ela era ainda viva.
Mas me pareceu tudo um pouco piorado – Emily parece uma matrona coroca, dada a rompantes de raiva, a agressões aos empregados, e além disso é moralista.
Seu irmão, Austin (Benjamin Wainwright) ali não tem nada do homem charmoso, exuberante, colecionador de obras de arte, que a mantinha informada do que acontecia no mundo da alta cultura.
Ele está sempre acuado pelo pai, Edward (Keith Carradine), ou por Emily, que o trata a ponta pés. A outra irmã, Vinnie, é a mais equilibrada dos três, na bela atuação de Jennifer Ehle.
Necas no filme sobre a amizade inspiradora (e safada, dizem a más línguas!) de Emily com a cunhada Susan Gilbert (Johdi May), mulher culta e lida, que foi uma de suas críticas mais afiadas, a sangue quente.
No seu lugar temos uma amiga inventada pelo cineasta, Vryling Buffam (Catherine Bailey), que exprime, essa sim, o wit, o charme e a picardia dickinsonianos. Por que a esquizofrenia?
Mais: pitiribas de sua relação tiona com os sobrinhos Frances e Louisa Norcross, a quem mandou um bilhete premonitório de sua morte (“Called back” – “Chamada de volta”).
Nem traço de suas molecagens (presentes nos poemas e cartas) – uma vez ela mandou pelos correios a uma prima o rabo que um gato da irmã perdeu num acidente.
Nem um au há na fita sobre Carlo, o cachorrão newfoundland que a acompanhava pelas brenhas de Amherst – o “meu confederado”.
Picas de sua intimidade com o Lexicon (a edição de 1844 do dicionário Webster), com Shakespeare, com os “parentes das estantes” (os livros).
Nem um frame de sua extensa correspondência com mais de 90 pessoas, a quem encaminhava seus poemas, às vezes acompanhados de flores e bolos que ela mesma assava.
Que drôle de “reclusão”, a do mito, foi aquela? Cynthia Nixon disse que, se viva fosse, Emily seria hoje uma tuiteira!
No filme, também nonada da troca de cartas que ela manteve com seu mentor, Thomas Wentworth Higginson durante 25 anos, e que foi o seu primeiro editor post-mortem, junto com Mabel Loomis Todd, a amante do irmão Austin.
É certo que Emily nunca levou em conta as dicas técnicas (convencionais) de Higginson, mas também é certo que esse importante crítico da revista The Atlantic, discípulo de Ralph Waldo Emerson, feminista militante, comandante do primeiro regimento de soldados negros do Exército da União na guerra civil e correspondente de Charles Darwin, era uma de suas principais fontes de inspiração, como informa Brenda Wineapple em “White Heat”.
Nadica da troca construtiva que Emily manteve com os empregados da casa, negros e irlandeses, de quem aprendeu expressões em inglês que os críticos mal humorados e ignorantes de linguística consideram “broken English”, mas que é apenas antigramatiqueiro.
Aos irlandeses parece que ela deve os vestígios da cultura católica que frequentam os seus poemas. E foram seis irlandeses, por expressa determinação sua, que carregaram o seu caixão, desde a sua casa até o cemitério.
A cena do ataúde na carruagem nunca existiu – é só uma licença poética de Terence Davies para encaixar um dos poemas mais populares de Emily, “Because I could not stop for Death”.
Tirando os nove, o pior é que o filme não projeta a dimensão gloriosa, exuberante, cerebral, visceral e também ambígua, humorística e irônica (Carlos Daghlian!) da obra de Emily Dickinson, considerada por muitos a maior poeta dos Estados Unidos, talvez do mundo – traduzida no Brasil, pioneiramente, por Manuel Bandeira, desde 1942.
A gente só vê, quase, o seu lado breu, agônico – magistralmente interpretado por Cynthia Nixon, aliás.
O princípio romântico a que ela é fiel, o da beleza equiparada à verdade, é subvertido. A beleza em Além das Palavras está a serviço só de uma faceta do diamante, a mais sombria.
O filme de Terence Davies é ótimo para quem toma remédio tarja preta!
Cadê a Emily Dickinson pós-transcendentalista, epicurista, spinozista via George Eliot (o ápice do que ela entende por “glória”), a “budista acidental” (RC Allen), que aos sábados prefere um passarinho como corista aos hinos da igreja?
Cadê a Emily jardineira, que vive entre tordos, rosas, trevos e abelhas e até ganha uns trocados com o tabaco que cultiva? Cadê a Emily de visão científica, aquela que diz que Darwin “descartou o Redentor”?
Que é da Emily vulcânico-erótica das “Noites Selvagens”, das Cartas ao Mestre? Onde está a “Madame Sade de Amherst”, de que fala Camille Paglia? Onde a Emily cuja imaginação rivaliza com a de Shakespeare (Harold Bloom)?
É óbvio que cinebiografia não tem de ser documentário. Qualquer cineasta acaba romantizando para suprir a falta de informações, ou porque as suas lentes são mesmo românticas.
É também óbvia a necessidade de escolher um recorte da vida da personagem para caber em duas horas – senão jamais veríamos o Guerra e Paz.
Mas tudo isso posto na balança, e me arriscando a ser taxado de sectário, sou obrigado a dizer: a Emo (!) Dickinson de Terence Davies não é a minha Emily. Absolutely!
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(*) Antônio Carlos Queiroz é jornalista e costuma traduzir Emily Dickinson nas horas vagas para aprender inglês.