"A vida é de quem se atreve a viver".


Cena de Antes o tempo não acabava
"Antes o tempo não acabava" gera protesto e indignação

Filme exibido no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, dirigido por  Sérgio Andrade, menciona o infanticídio entre os índios de "forma irresponsável". A antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues (*) viu o filme e faz um comentário.

Eis o texto de Patrícia:

"Sábado [24/9] à noite me espantei profundamente com o filme "Antes o Tempo não Acabava", que está na Mostra Competitiva do Festival de Brasília.

Exibido pela primeira vez no Brasil, o filme tem sido anunciado na mídia como um filme inovador sobre a temática indígena que foi bem recebido pela crítica estrangeira.

Travestido de um formato/conteúdo modernoso, o filme promove uma pauta extremamente reacionária e condizente com os atuais tempos de retrocesso político.

O festival trouxe três longas metragens com temática indígena, "TaegoÃwa", "Martírio" e "Antes o Tempo não Acabava". Os dois primeiros abordam a tradição indígena como fonte admirável de resistência e resiliência política em um mundo de relações violentas em que os colonizadores oprimem os povos originários e negam o direito à diferença e à sua reprodução em uma terra própria. Já o filme "Antes o Tempo não Acabava" parte de uma abordagem oposta.

A pretexto de abordar o tema do choque entre a chamada modernidade e as culturas ancestrais, o filme traz a trajetória peculiar de um índio que é oprimido pelas próprias tradições indígenas no meio urbano.

Ele e sua família fogem da prática do infanticídio e da repressão à liberdade sexual. Como está implícito no próprio nome do filme, "Antes o Tempo não Acabava", a tradição indígena é associada de forma muito preconceituosa ao arcaico imutável, ao atraso, à repressão individual e até à violação de direitos humanos, enquanto a modernidade é construída ingenuamente como um espaço de transformações e liberdade individual no que se refere a questões religiosas/rituais e sexuais.

O protagonista e sua irmã são oprimidos por velhos guardiões da suposta cultura indígena estática e anacrônica representada no filme que impõem, à força, o homicídio de uma criança deficiente ou tentam praticar uma espécie de “cura gay” ritual ao jovem.

Choca a forma equivocada e preconceituosa como o infanticídio é abordado no filme, que não condiz em absoluto com a realidade etnográfica dos povos indígenas; e também a forma como a homossexualidade indígena é encarada, invertendo completamente a realidade.

Como se sabe, o homossexualidade é uma prática tradicional de muitos povos indígenas das Américas, anterior ao contato com o mundo europeu.

Foi a colonização cristã que trouxe uma repressão profunda a essas práticas e a sua condenação moral. No filme, no entanto, são os próprios guardiões da suposta tradição indígena que tentam “salvar” o protagonista (palavra usada no filme) das suas inclinações homossexuais.

Há inclusive uma associação completamente indevida entre o ritual de iniciação masculina apresentado no filme e essa tentativa de cura gay.

Curiosamente, o ator que protagoniza o filme é um tikuna assumidamente homossexual e evangélico, que é exposto em cenas de sexo explícito. No mundo real, a cura gay é uma proposta justamente de algumas igrejas evangélicas, mas na representação inconsequente do filme é o povo Sateré Maué que tenta curar seu filho desgarrado.

Embora seja alardeado pelos codiretores como um filme transgressor, a visão estereotipada e preconceituosa sobre as culturas indígenas se aproxima da visão evangélica fundamentalista que tenta criminalizá-las no Congresso Nacional tendo como carro chefe a falsa bandeira do combate ao infanticídio.

A demonização das ONGs, que também é tratada no filme, misturando alhos e bugalhos, também tem afinidade com essa pauta conservadora. O herói do filme é um índio que é oprimido pela própria cultura indígena e quer deixar de ser índio.

Ele quer ter um nome branco, ao contrário de muitos povos indígenas que lutam para ter seus nomes indígenas reconhecidos nos documentos oficiais.O filme promove a ideologia integracionista e assimilacionista que norteou o Estado brasileiro durante séculos até o advento da nossa Constituição, que garantiu aos índios o direito de se reproduzir conforme seus costumes e tradições e que agora está sob forte ataque das bancadas evangélica e ruralista.

É notável ainda a falta de responsabilidade com os povos indígenas, que são representados no filme de modo lesivo, e em especial com o povo Sateré Maué, cujas práticas são tratadas de maneira deturpada sem que fossem consultados minimamente sobre essa indevida exposição.

Perguntados no debate posterior ao filme sobre as consequências políticas do mesmo para os povos indígenas, neste momento em que os seus direitos estão fortemente ameaçados, os codiretores simplesmente negaram que o filme tenha qualquer componente político, sendo apenas uma expressão da liberdade criativa deles".
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(*) Patrícia de Mendonça Rodrigues é PhD em Antropologia pela Universidade de Chicago (EUA).

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