João Lanari Bo (*) –
Em 2020 os cinéfilos preparavam-se para celebrar o centenário de Federico Fellini, nascido em 20 de janeiro de 1920 – no Brasil, uma estupenda retrospectiva no CCBB, com a maioria dos títulos em 35 mm, foi exibida no Rio no começo do ano, viajou para São Paulo e chegaria em Brasília no final de março (interrompida na capital paulista, está à espera de melhores condições sanitárias para ser reprogramada).
A projeção foi suspensa em função do Coronavírus e a luz acendeu. Nesse hiato temporal, vale pensar um esquentamento para a mostra que se avizinha, uma espécie de preliminar onde podem ser conferidos momentos fundadores desse exuberante inconsciente cinematográfico – a tal ponto exuberante, como comentam muitos de seus admiradores, que o termo “felliniano” acabou sendo assimilado pelas comunidades linguísticas, ao lado de luminares como Kafka, Sade e Dante (respectivamente kafkiano, sádico, dantesco).
Esses momentos vão desde a sessão inaugural em uma sala de cinema, quando Fellini assistiu com seis anos de idade ao primeiro filme, nos braços do pai, até as produções neorrealistas que participou, como co-roteirista ou assistente de direção, na segunda metade da década de 1940 até começo de 1950. A lista que se segue não é exaustiva: comparecem alguns filmes exemplares, disponíveis na internet com subtítulos (clique no título sublinhado para acessar o link do filme).
A primeira parada nessa viagem ótico-sentimental é o inigualável “Maciste all'inferno”, de 1926, exibido no cinema Fulgor, na cidade natal do cineasta, Rimini, onde Urbano Fellini levou o filho para assistir à fita.
Maciste é um musculoso ex-escravo que desce aos infernos, seduz a mulher de Plutão e sua enteada, e retorna à superfície terrestre depois de inúmeras peripécias sensuais e guerreiras, seguida de uma última punição antes da redenção. Um filme felliniano, por excelência, que se inscreveu no imaginário do jovem espectador – e que suspendeu o fôlego das audiências. (Maciste).
Um antecedente que vale à pena conferir é o colossal “Cabiria”, de 1914, com intertítulos de Gabriele D'Annunzio, com mais de duas horas de duração – filme que influenciou Griffith e Fritz Lang, marcou a estreia do personagem Maciste e foi homenageado pelo próprio Fellini em 1957, com "Noites de Cabíria".
Da sua formação cinematográfica, Fellini salienta duas instâncias fulgurantes, Irmãos Marx e Buster Keaton, ambas fartamente presentes na internet. Em suas palavras: “Os irmãos Marx me deslumbraram. Estes são os que foram meus patrocinadores espirituais. Buster Keaton me agradava mais do que Charlie Chaplin (...) sua obstinação parece sugerir-nos um ponto de vista, uma perspectiva completamente diferente, quase uma filosofia diferente, ou uma religião diferente, que tudo revira e torna irrisório e inútil todas as ideias e premissas congeladas em um sistema de conceitos inalteráveis: um ser engraçado que vem diretamente do budismo zen.”
Ao se mudar para Roma em 1939, Fellini começou a escrever artigos e publicar caricaturas. Foi quando entrevistou o popular ator Aldo Fabrizi, de quem se tornou amigo e colaborador. Em 1943 participou do roteiro de “Campo de Fiori”, com Aldo Fabrizi, Peppino De Filippo e Anna Magnani - a versão brasileira levou o título de “Cada qual com seu destino”.
Em 1944 apresenta Fabrizi a Roberto Rossellini, e contribui para um clássico que dispensa apresentações – “Roma, cidade aberta”.
Em 1947 colabora com o amigo Alberto Lattuada em “Il delitto di Giovanni Episcopo”, história de um comportado funcionário público que se associa com um trapaceiro. Em 1948, participa como co-roteirista e ator em dos episódios de “L’amore”, onde contracena, no papel de (falso) São José, com Anna Magnani.
Duas pérolas do neo realismo em 1950, com a assinatura de Fellini entre os roteiristas: “Il cammino della speranza”, de Pietro Germi, sobre emigrantes italianos fugindo da penúria social através dos Alpes; e o belíssimo “Francisco, Arauto de Deus”, de Roberto Rossellini, onde também fez assistência de direção, sobre o santo da paz, Francisco, com elenco quase todo não-profissional (monges franciscanos), a exceção de Aldo Fabrizi.
Um ponto fora da curva nesse período inicial de colaborações é “La città si difende”, de 1951, um filme noir, policial e dramático, de Pietro Germi, com Gina Lollobrigida.
Em 1951, o primeiro longa-metragem, dirigido por Fellini em parceria com Alberto Lattuada, com as respectivas esposas (e amigas) entre os principais papéis – “Mulheres e Luzes” (Luci del varietà), com Carla Del Poggio e Giulietta Masina.
Finalmente, um detour insólito: em 1949, Michelangelo Antonioni realiza um curta fantástico, “L'amorosa menzogna”, sobre fotonovelas. Pouco depois, escreve um argumento para um longa-metragem sobre o assunto, que acabou virando roteiro nas mãos de Fellini e parceiros, Tullio Pinelli e Ennio Flaiano. Antonioni não gostou do que leu, e o filme acabou nas mãos de Fellini, em seu primeiro solo, de 1952 - “Lo sceicco bianco” - no Brasil, “Abismo de um sonho” (disponível apenas para streaming pago, a custo baixo).
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(*) João Lanari Bo, pesquisador, escreveu “Cinema para russos, Cinema para soviéticos”, publicado em 2019 pela editora Bazar do Tempo, e “Cinema Japonês”, publicado em 2016 pela Editora Giostri.