José Carlos Peliano –
à história não documentada
pelos conquistados, colonizados e aniquilados
Códigos, senhas, criptogramas, segredos, fora? Pô, Ema, limpo!
Limpoema, Ema, esqueça cada, todo e qualquer teorema,
só funcionam ao seguir a régua, o compasso, a mente do inventor
segundo os elementos, os termos e o conjunto dos postulados
O poema limpo não é só um, segue muito mais que um tema
foge de corolários, parâmetros, padrões e esquema
varrido de intrigas, preconceitos, injustiças, blasfêmias
recita cânticos a bichos, plantas, planetas, machos, fêmeas
Não está na farpa cruel envenenada enfiada fundo na pele
no rastro e pegadas mortais do câncer entre as vísceras
no poder ilegítimo, corrupto, picaresco, vão, podre
na mentira sórdida, hipócrita, etiquetada, mercantil
Doce no sabor e deleite do doce de batata doce
singelo no sorriso do bebê de braços abertos à alegria
amigo na mão dada ao caído e dolorido pela depressão indigesta
terno nos olhos amendoados de uma tarde sobre os trigais
O poema é limpo, mesmo que avariado, desconexo, incompreensível
estampado nos operários que saem da madrugada casa todas as manhãs
no desempregado perdido em meio a filas incontáveis atrás de trabalho
no preso trancafiado entre grades, cubículos, pobres injustiçados e condenados
O poema limpo é de Ema, pô, ela merece, ela é santa e um dilema
traz-me a lira, a inspiração, a métrica, o gozo e as trombetas
tira-me do sério, do entendimento e da vastidão da alma feminina
o poema é limpo se o poeta acha em seus versos a boca de Ema
Pô, Ema, limpo o poema de minhas dúvidas, incertezas e dissabores
dou-te a versão definitiva e derradeira como o último suspiro
em troca de me libertares de meu vício titânico de querer-te
chegar a ti desejo apenas pelo pouso do poema se revelando em minhas mãos
os arranha-céus, os viadutos, as autopistas estão no poema limpo
os shoppings, supermercados, fábricas, aeroportos e autódromos
as filas, guichês, salas de espera, pontos de ônibus, passarelas
os tributos, provas finais, vestibulares, inquéritos, cobranças
fora do poema limpo estão os que entulham e aviltam esse circo
vendaval supérfluo de ideias, projetos, obras e montagens sem limites
servidão compulsiva de gente com máquinas de somar nas cabeças
bolsos cheios de mãos ambiciosas e contas abarrotadas de lucros desmedidos
o poema limpo não contempla a fome que come os sem mesa posta
os emigrantes que fazem do mar suas moradas despejados por barcos afundados
inocentes e pobres de esperança e vida que se curvam a bombardeios sem nome
alvos dos que se lambuzam de poder e dinheiro pelo dinheiro e para o dinheiro
Pô, Ema, limpo o poema de degradações, destruições, desconstruções
lixeiras infernais de ambições e compulsões sem estômago e fígado
castelos, monumentos e tronos de bizarros fantasiados humanos
o poema só é lido pelas mulheres e homens libertos, lado a lado
O poema limpo será escrito por corações que batem no ritmo do sol
decorado e declamado por todas as noites braços dados à lua
em todos os quadrantes, horizontes, vales, cordilheiras e direções
para se dormir com estrelas, sonhar gerânios, acordar colibris
Pô, Ema, refazendo teu nome de trás para frente, ame! Pô, Ema, ame!
ame a ti, a mim a todos e ao poema limpo que te inspiras a cada verso
a cada estrofe, a cada poeta, a cada flor nascida não sei onde no poema
para ofertar a quem dele se sinta rodeado por floradas de vários matizes
O amor está no poema limpo assim como os sabiás, as baleias, as borboletas
que a cada voo, nado, farfalhar, levam a natureza aos versos do poema limpo
onde o universo os compõem e reescreve nos planetas, meteoros e cometas
pelas mãos de Marie Curie, Galileu, Newton, Einstein e Clementina de Jesus
O poema limpo está no Operário em Construção de Vinícius de Moraes
na Construção de Chico Buarque, na fibra de Nise da Silveira
nos Retirantes de Cândido Portinari, nos curvas de Niemeyer
nos jardins de Burle Max, nas páginas de Clarice Lispector
O poema limpo não tem rédeas, gaiolas, coleiras, jaulas, prisões
sua mina verte água cristalina e abençoada pelo ventre da terra
dispensa legislativo, judiciário, executivo e eclesiástico
é o canto de liberdade de Zumbi dos Palmares, Tiradentes e Lampião
Pô, Ema, limpo? Só se limpo como tua imaculada e mundana presença
que faz de seus dons a imagem e semelhança da mulher e do homem
composta em cada berço, cama, casa, rua, cidade, país, continente
para porem a vida que se faz vida em contínuo movimento e poema
O poema limpo não é de ninguém, não requer face, nem texto, nem ritmo
ele se faz a cada emoção que venha de dentro, do avesso do avesso
lá onde Freud e Jung foram e chegaram perto com versões diferentes
e Leonardo da Vinci captou pelo sorriso enigmático de Gioconda
Limpo o poema, Ema, ele não precisará mais ser escrito ou lido
estará contigo em cada um de nós a cada voo da imaginação e criação
a cada passo em direção ao porto amigo, sagradamente humano
onde todos se reconheçam em todos gente comum sem mais nem menos