Está de volta o Guia Musical de Brasília depois de um hiato de quase dois anos devido à falta de financiamento
O mestre das baquetas sinfônicas

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Publicamos aqui a entrevista do maestro Ney Rosauro para o Guia Musical de Brasília, que está de volta nesta sexta-feira, 28 de maio, depois de ficar suspenso desde o segundo semestre de 2019 pela falta de financiamento, agravada pela pandemia.

Nos próximos dias, publicaremos as demais entrevistas da oitava edição: Joel de Oliveira, cantor e produtor do projeto Música e Poesia para Todxs; Ademir Júnior, sax tenor, autor do best seller Os Caminhos da Improvisação; Patrícia Duboc, cantora de MPB e gospel; Virgínia Feu Rosa, dona de uma das vozes mais delicadas do Distrito Federal; e Paula Zimbres, rara contrabaixista de sólida formação teórica, agora também explorando a voz.

A primeira entrevista que eu e o publisher do Guia Musical de Brasília, Joaquim Barroncas, fizemos com Ney Rosauro, 68, um dos maiores percussionistas sinfônicos do mundo, aconteceu em novembro de 2019, antes do início da pandemia e do longo hiato de nossa publicação.

Mais de uma hora depois da conversa, que aconteceu em seu apartamento no Sudoeste, nos fundos do Hospital das Forças Armadas, a gente saiu com a sensação de ter percorrido os quatro movimentos do seu Concerto nº 1 para Marimba e Orquestra, o mais popular para esse instrumento em todo o mundo, executado por centenas de orquestras de todos os continentes. Os movimentos são Saudação, Lamento (por não termos conhecido o Rosauro antes), Dança (durante a qual colhemos informações preciosas sobre a formação da vida cultural de Brasília) e Despedida (com a expectativa de voltar ali outras vezes).

Na parte de cima do duplex do Rosauro há uma enorme varanda coberta, o estúdio com os instrumentos e o computador, e um reservado com um grande armário para acomodar as partituras, os métodos didáticos, cópias de seus álbuns, além de uma pequena coleção de guitarras e contrabaixos.

Nascido no Rio de Janeiro de uma família gaúcha, Rosauro mudou-se para Porto Alegre ainda criança, e para Brasília, aos 18 anos, no final de 1969, para estudar na UnB. Na época tocava violão e guitarra. Como não havia cursos para esses instrumentos, teve que optar pelo curso de composição e regência. No primeiro ano, estudou violino. Depois, oboé e flauta. Ao longo do curso, fez também piano. “No último ano, em 1977, fui para o curso de verão da Escola de Música de Brasília tocando contrabaixo, o instrumento que eu mais gostava, e ali conheci o Luiz D’Anunciação, que veio do Rio trazendo uma marimba e um vibrafone. Eu fiquei encantado e resolvi que iria parar com a música popular para estudar percussão sinfônica”.

Anunciação - Abramos um parênteses para explicar quem era Luiz D’Anunciação. Sergipano, conhecido como Pinduca, era ninguém menos do que o papa da percussão no Brasil naquela época. Tendo iniciado a carreira ainda nos anos 40, formou-se nos seminários de música da Universidade Federal da Bahia no final dos anos 50, estudou percussão na Universidade do Colorado, vibrafone com Phill Krauss, em Nova York, e marimba com José Bethancourt, em Chicago. Instrumentista, percussionista, compositor, pesquisador, professor, foi ele quem preparou o naipe de percussão da Orquestra Sinfônica Brasileira quando essa fez a excursão pela Europa sob a direção de Isaac Karabtchevsky nos anos 90. 

E agora façamos um flashback para entender um pouco mais a decisão de Rosauro de trilhar os caminhos da música erudita. Ele conta que no início dos anos 70, recém-chegado a Brasília, enturmou-se com uma moçada que se reunia na 206 Sul, “um pessoal meio hippie”, diz ele, que costumava sentar sobre a estrutura (manilhão) de um poço de visita de um bueiro. Ali mesmo esses moços começaram a tocar, criando a primeira banda de rock autoral de Brasília, a Margem, que atuou entre 1970 até 1974.

Lemos na capa do álbum comemorativo de 40 anos que o grupo foi criado por Peninha (guitarra e vocal), Ney Gaúcho-Rosauro (guitarra, baixo e vocal) e Sérgio Boré (percussão e vocal) no final de 1971. Tonicesa Badu (violão, guitarra e vocal) se juntou depois, assim como o Baduzinho (percussão). Badu e Peninha saíram e foram substituídos respectivamente por Anninha Chaves, nos vocais, e Nanche Las Casas (violão, guitarra e vocal). Nessa época, a banda tocava em Brasília e Goiânia, e fez uma apresentação histórica para os detentos da Papuda.

Temas do Cerrado - A temática, diz Rosauro, incluía as tribos do Planalto, os gramados da cidade, o vento frio do Cerrado, mas também – está escrito na capa do álbum – as gírias da época, o inconformismo, o amor, o “cotidiano de jovens cabeludos que viveram a adolescência em um período político conturbado, em uma cidade em construção”. Uma das canções da banda, Medo do Escuro, inspiraria depois uma música de Renato Russo, como ele mesmo disse ao Peninha.

Um fato transformaria a Margem numa espécie de usina musical, diz Rosauro. “Com a ajuda do pai do Badu, a gente comprou uma aparelhagem completa. Tínhamos P.A., microfones, bateria, tudo. Daí começaram a surgir várias bandas no entorno. Não tocávamos sozinhos, fazíamos um festival, chamando as outras – Bueiro, Biscoito Celeste, os irmãos Clodo, Tetê (Catalão) e a turma da Cozinha. Eles pegavam carona na aparelhagem da gente. Surgiu então um ‘Som Brasília’”.

Para escutar algumas músicas da banda, visite o site SoundCloud e procure por “Banda Margem”.   

Retomando o fio da meada: Rosauro conta que quando conheceu Luiz D’Anunciação já estava meio cansado de tocar em bares e um pouco decepcionado com a música popular. “Sabe, ficar tocando à noite, bebendo, se drogando? Eu já estava querendo estudar música a fundo, avançar com a música erudita”.

Decisão tomada, ele começou a estudar percussão no Rio de Janeiro, enfrentando jornadas de 22 horas de ônibus durante dois anos. Depois, ganhou uma bolsa e foi para Würzburg, Alemanha, estudar com um dos pioneiros da percussão na Europa, Siegfried Fink. De volta a Brasília, começou a dar aulas na Escola de Música, tendo sido o fundador de seu curso de percussão. Nessa época entrou na Orquestra do Teatro Nacional, que acabava de ser criada pelo maestro Cláudio Santoro. Em seguida voltou para a Alemanha para fazer mestrado.

Doutor em Miami – No segundo retorno daquele país, foi para a Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. “Eu queria fazer currículo para poder dar aula na UnB. Meu sonho era dar aula na UnB”. Daí fez doutorado na Universidade de Miami. Em 1995, passou num concurso para a UnB, mas teve o azar disso acontecer na transição do governo FHC para o governo Lula, quando a burocracia prevaleceu.

“Passaram seis anos e eles não me contrataram. Eu pensei: minha vida acabou, estou arruinado. Nisso me ligam dos Estados Unidos, me chamando para uma audição. Disseram que tinham interesse em me contratar como professor. Eu não queria morar nos Estados Unidos, mas eles me ofereceram um ótimo salário, bolsas para os meus filhos e o custeio da mudança. Ah, eu fui embora. Foi bom porque daí é que a minha carreira internacional despontou”.

A mudança para os Estados Unidos aconteceu no ano de 2000, e nos próximos dez anos ele foi o diretor dos estudos de percussão da Universidade de Miami. Há cinco anos, Rosauro pediu demissão para se tornar um músico freelancer. Por quê? “Eu já estava cansado. Lá é muito bom para ganhar dinheiro mas é preciso trabalhar muito. Eu chegava a trabalhar seis, sete dias por semana. Lá eu tinha muitas vantagens, como o sponsorship da Yamaha, que me cedeu vários instrumentos. E lá eu desenvolvi dez modelos de baquetas para a Vic Firth, a fábrica de baquetas mais importante do mundo. Tudo isso são privilégios, mas eu queria voltar para o Brasil, porque aqui tenho muitos amigos, posso chegar numa roda de choro e tocar sem compromisso”.

Ney Rosauro já fez concertos e deu aulas em 45 países. Publicou onze CDs e editou mais de 100 obras de métodos didáticos para percussão. Hoje, os direitos autorais sobre a execução de suas obras são a sua principal fonte de renda. Aqui entram também o aluguel (EZ-Rent) de suas partituras para orquestras e a venda de seus manuais didáticos. A aquisição de suas partituras para orquestras e dos manuais didáticos pode ser feita através de seu website: www.neyrosauro.com

Compromisso - Rosauro não se preocupa, porém, só com a parte comercial do negócio. Ele diz que se sente responsável pela difusão da educação musical da percussão no Brasil, pois os estudantes daqui têm pouco acesso aos materiais didáticos. Ele escreveu o único método brasileiro de caixa clara, além de onze outros métodos para o ensino dos instrumentos de percussão, todos voltados para o mercado brasileiro. Sua série de métodos didáticos estão agora disponíveis de graça para os alunos de percussão no seu website. 

Ficamos curiosos sobre o termo mallets. Rosauro nos explica que tanto são as baquetas como os instrumentos de percussão com barras, os barrafones, quer dizer, a marimba, o vibrafone e o xilofone, uma marimba menor. Portanto, quando se diz “música para mallets” quer se dizer música composta para esses instrumentos.

Rosauro faz questão de nos mostrar as baquetas que ele criou para a firma Vic Firth. Quatro modelos para marimba, três modelos para vibrafone e outras três híbridas, para marimba e vibrafone, além de um modelo para caixa clara. As pontas das baquetas para marimba são feitas de lã, mais moles, porque as placas da marimba são de madeira e podem se quebrar. Para o vibrafone, as baquetas têm as pontas mais duras, feitas de corda. As híbridas misturam os dois materiais.

Na dissertação de mestrado de Eduardo Fraga Tullio, da Universidade Federal de Goiás, sobre as composições de Luiz D’Anunciação, Ney Rosauro e Fernando Iazzetta – um atestado da relevância artística e pedagógica de Rosauro – descobrimos que ele criou até mesmo um estilo para segurar as baquetas. Diz o Tullio que existem três formas principais de segurá-las na técnica das quatro baquetas, amplamente utilizada no Concerto nº 1 para Marimba e Orquestra. “Na primeira, chamada ‘Tradicional’, as baquetas ficam cruzadas na mão, apoiada pelo dedo mínimo. Na segunda, chamada ‘Burton’, a baqueta externa é pressionada contra a palma da mão apoiada pelo dedo médio. Esta segunda maneira tem uma variação chamada ‘Extensão do grip Burton’ elaborada por Ney Rosauro. No estilo ‘Rosauro’ a baqueta externa é apoiada pelo dedo anular – este estilo também merece menção, uma vez que é muito utilizado no Brasil por ex-alunos dele. Na terceira chamada ‘Stevens’, as baquetas não se cruzam. A primeira baqueta é segurada pelos dedos polegar e indicador e a segunda baqueta é apoiada pelos dedos anular e mínimo”.

Concerto nº 1 - Tullio informa que o Concerto nº 1 para Marimba e Orquestra foi escrito entre junho e julho de 1986 em Brasília, dedicado a Marcelo, um dos filhos do compositor. A estreia aconteceu no mesmo ano nos Estados Unidos com a Manitowoc Symphony Orchestra sobre direção de Manuel Prestamo. Com o sucesso comercial da gravação do concerto em CD e vídeo em 1990 pela percussionista inglesa Evelyn Glennie com a London Symphony Orchestra, o concerto rapidamente tornou-se conhecido em todo o mundo. Na verdade, é o concerto de marimba mais popular de todos os tempos, tendo sido tocado por mais de 3.000 orquestras.

Ainda segundo Tullio, “a parte solo explora muitas possibilidades da técnica de quatro baquetas. Originalmente escrito para marimba e orquestra de cordas, o concerto contém quatro movimentos, diferente da forma de concerto tradicional (rápido, lento e rápido), a terceira parte apresenta um tempo médio antes do final vigoroso. O modo brasileiro pode ser sentido por toda a peça, que contém fortes padrões rítmicos. A música foi composta com a intenção da marimba liderar o material temático e com isso a parte da marimba pode ser tocada quase como uma peça solo sem precisar do acompanhamento da orquestra”.

O Concerto está disponível no YouTube (ouça aqui) em várias versões, ao lado de outras importantes peças, como o Concerto nº 2 para Marimba e Orquestra, os Prelúdios para Marimba, os Concertos nº 1 e 2 para Vibrafone e o mais recente, o Duplo Concerto para Marimba e Tímpanos

Rosauro nos conta que continua compondo, embora em menor escala. De agora em diante ele pretende tocar mais música popular, usando os mallets, participar de rodas de choro, e se dedicar às vídeo-aulas pela Internet. Ele interrompe a conversa para nos dar uma canja na marimba, executando um chorinho com sabor de jazz. E de novo nos surpreende: “Assim que eu voltei para o Brasil há dois anos e meio, comecei a tocar cavaquinho, pois é mais fácil eu carregar esse instrumento do que colocar uma marimba nas costas”!

Um livro, talvez? - Eu e o Joaquim achamos que a conversa foi ótima e que está na hora de parar de alugar o nosso anfitrião. Mas ele quer relatar mais fatos que vai puxando lá dos anos 70 e 80. Por exemplo, diz que foi o diretor da primeira rodada dos Saltimbancos em Brasília, montado por Hugo Rodas. Informa que nessa época, junto com Ricardo Vasconcelos e o Rodolfo Cardoso, criou o primeiro protótipo de trio elétrico na cidade, Flor do Planalto. “Nós tocávamos nos bares da Asa Norte mas nunca saímos em cima de um caminhão. Com esse bandolim aí”, diz,  se levantando para nos mostrar o instrumento.

“O Reco do Bandolim ia lá várias vezes no trio elétrico dar uma canja”, conta. “O primeiro bandolim que o Reco teve fui eu que emprestei pra ele. E ele deixou o bandolim no chão, foi dar ré e o carro passou por cima. O primeiro bandolim que o Reco comprou foi para me pagar! Depois eu tive uma banda com ele, a quem chamávamos de Jimmy Reco. O irmão dele, o Ivan tocava na banda, chamada Carência Afetiva”.

Já nos levantando para sair, Rosauro nos parou com uma exclamação: “Ah, vejam esse baixo! Era o baixo que eu tocava na Margem. Na época era branco, agora é amarelo. Eu ganhei quando tinha 18 anos”.

Diante de tantas histórias, sugerimos ao Ney Rosauro para escrever um livro com a memória dos primeiros movimentos culturais de Brasília. É claro que ele já havia pensado nisso.

Atualização – Agora, no final de maio, Rosauro estava passando alguns dias com a esposa perto de Baden-Baden, no sudoeste da Alemanha, na casa dos sogros. Por telefone e pelo Whatsapp trocamos algumas palavras sobre o que ele fez nos últimos meses.

No começo da pandemia, Rosauro estava em Florianópolis, onde ficou até junho do ano passado, um período muito produtivo durante o qual compôs uma Suíte Brasileira para Vibrafone e Orquestra de Cordas, com sete movimentos – Maracatu, Bossa Nova, Choro, Coco, Dança, Valsa e Frevo. Dessa suíte ele desdobrou outra, para flauta e marimba, em quatro movimentos – Valsa, Coco, Dança e Choro. Por fim, compôs uma peça para vibrafone em dois movimentos, Interlúdio e Choro, que vai integrar um CD de seu amigo mexicano Israel Moreno, professor da Universidade de Ciências e Artes de Chiapas.

Ele também investiu muito na Ney Rosauro Percussion School, gravando 25 vídeos-aulas que estão à disposição do público brasileiro gratuitamente no seu canal do YouTube. Os vídeos foram baseados em seus materiais didáticos e contêm até mesmo dicas práticas, de como enrolar baquetas, por exemplo.

Ney Rosauro diz que este ano está trabalhando em ritmo menos acelerado. Saindo da Alemanha, voltará para a sua casa em Miami, onde já estava passando uma temporada que aproveitou para botar as leituras em dia. Na verdade, devorou mais de dez livros sobre a música popular brasileira, incluindo autores como Mário de Andrade, Sérgio Cabral, Ruy Castro, Nelson Motta, Regina Zappa, Ismael Caneppele e Caetano Veloso. “Imagine, eu ainda não tinha lido a biografia do Ary Barroso”!

Outra novidade desse período é que ele andou tomando aulas de piano com Renato Vasconcelos. "Eu já devia ter feito isso há mais tempo", comenta.

Ney Rosauro deve voltar ao Brasil apenas no final de junho, a tempo de se preparar para a estreia de sua nova Suíte com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, em setembro.

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