Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
O Carlos Afonso, amigo meu doutor dramaturgo, fez drama na sexta-feira me cobrando um comentário a respeito do 457º aniversário do Shakespeare: “Você que é o rei das efemérides”.
Eu, não, o Adoniran Barbosa é que era. Efeméridas são as aleluias, as siriruias, as mariposas que ficam “dando vorta em vorta da lâmpida pra se esquentá”.
Eu não havia feito até agora nenhum comentário porque sempre fico confuso no dia 23 de abril. É que o Gui também morreu nesta data, o que nos leva a um problema paradoxal, de não fácil solução:
1) Se morreu no mesmo dia em que nasceu, o Shkspr foi um natimorto e, portanto, não pode ter brilhado nos palcos do teatro elizabetano. (Não sei por que razão o pessoal diz Elizabeth I com zê e escreve “elisabetano” com esse. Em Portugal é “teatro isabelino). Alguns amigos da onça quererão cancelar meu argumento com a observação interesseira de que o cara morreu no mesmo dia de anos diferentes, com intervalo de 52 anos, mas para mim, sendo ele eterno (na Eternidade não existe tempo), esse desnível não faz a menor diferença;
2) Daí, prossigo com o meu raciocínio, é que deve ter surgido a primeira hipótese de que o Shkspr foi uma invenção do Francis Bacon, filósofo, alquimista e um dos fundadores da Revolução Científica. Francis inventou também a receita espanhola da pancetta e o torresminho, futura base da civilização estadunidense;
3) Outra hipótese é que Shkspr foi na verdade o nom de plume da própria rainha Elizabeth I, mulher prendada e armada a todos os títulos. Por isso é que ele/a fez a célebre dedicação a Mr. W. H., "the onlie begetter of these insving sonnets". A Bete teria se entregado aqui, cometendo o que os psicanalistas chamam de lapsus calami, quer dizer, um lapso com lápis. O contra-argumento realista, razoável, simpático e politicamente correto é que o poeta foi bi. Pode ter sido queer também, mas no século XVI queer significava só “strange, peculiar, odd, eccentric”.
4) Por outra, talvez o Shkspr tenha sido a criatura de um francês, Jacques Pierre, dado a ingresias a ponto de ter saxonado o nome para Shakes (de Jacques) Peare (de Pierre). Ao viajar da Ile-de-France para a Grã-Bretanha, parece que Jacques trocava d’ilhas para compor trocadilhos. (Piada velha, do Barão de Itararé!) Só na Megera Domada tem 176, tipo esses daqui:
PETRUCHIO: Come, come, you wasp, i’faith you are too angry.
KATHERINE: If I be waspish, best beware my sting.
PETRUCHIO: My remedy is then to pluck it out.
KATHERINE: Ay, if the fool could find where it lies.
PETRUCHIO: Who knows not where a wasp does wear his sting? In his tail.
KATHERINE: In his tongue.
PETRUCHIO: Whose tongue?
KATHERINE: Yours, if you talk of tales, and so farewell.
PETRUCHIO: What, with my tongue in your tail? nay, come again,
Good Kate; I am a gentleman.
(II.i.207–214)
Uma tradução dita livre:
PETRÚQUIO – Ora, ora, sua marimbonda, por que está tão irritada?
CATARINA - Se eu sou marimbonda, cuidado com o meu ferrão.
PETRÚQUIO – Então meu remédio é extraí-lo.
CATARINA – Ah, só se o imbecil soubesse onde ele fica.
PETRÚQUIO – Quem não sabe onde fica o ferrão da marimbonda? No rabo.
CATARINA - Na língua!
PETRÚQUIO - De quem?
CATARINA - Na sua, que só fala besteira! Tchau!
PETRÚQUIO – O quê, a minha língua no seu rabo? Ora, volte aqui, Cata. Eu sou um cavalheiro.
5) Mais uma hipótese é que o Shkspr talvez tenha sido o 17° Conde de Oxford, Edward de Vere (Deveras em português), que teria voltado como fantasma dois séculos e meio depois no papel do Earl-King, o bicho-papão do Goethe. (Caramba, acho que essa aqui só o Carlos Afonso, que é também cantor lírico, vai entender!)
6) Pessoalmente, não acredito na hipótese de que o Bardo tenha sido o Christopher Marlowe, embora esse cara, autor do Doutor Fausto, pudesse, sim, vender a alma ao Capeta para chegar aos píncaros da Glória e da Anne Hathaway, excepcional vendedora da Avon e, mais tarde, atriz de O Diabo veste Prada;
7) Por fim, tenho muita simpatia pela conjectura do bardólatra Harold Bloom, segundo quem a Dama Negra é que foi o Bardo. Eu acho que essa mulher era uma pedófila ou “comedora de anjos”, como depreendo do Soneto 78, inspirado no Fair Youth, o jovem mancebo a quem 126 dos 154 Sonetos foram dedicados: "So oft have I invoked thee for my muse…" (Tantas vezes te invoquei por musa...)
Tudo isso, claro, é especulação, palavra prima de “imaginação” ou de “sonho”, matéria da qual somos feitos, como dizia o Bardo.
Diz o Cafonso que o Shakespeare existiu mesmo, de carne, osso, warts and all. Quem senão ele poderia ter escrito Hamlet, a melhor peça de todos os tempos, obra de um diretor e ator de mão cheia, um cara com “muitas horas-voo de palco” e não de gabinete. Quem?
Eu é que não boto a mão no fogo enquanto não vir a prova do DNA extraída dos ossinhos do ídolo de Stratford-upon-Avon. Já apliquei meu ceticismo até a Jesus Cristo, para mim uma invenção de São Paulo até que me mostrem o exame do DNA dele, muito mais difícil nesse caso, tendo em vista a Ascenção.
Mas chega de lorota, o mais importante no caso do Bardo está no resumo desta frase do Millôr Fernandes, tradutor do elemento:
“Sheikispir sim, é que era bão: só escrevia citação!”