A Grande Onda de Kanagawa de Hokusai
Enfrentar a Onda antes que ela vire Tsunami

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Dias atrás eu decidi escrever um livrinho que talvez chamarei de Filosofia para o meu neto de 11 anos.

Projeto modesto, sem a pretensão de O Mundo de Sofia do Jostein Gaarder. Não quero recontar para o Zeca uma história da Filosofia Ocidental a partir das biografias de alguns pensadores emblemáticos, nem muito menos discorrer, por exemplo, sobre as especulações do Leibniz sobre as razões de Deus ter criado o melhor dos mundos possíveis, incluindo nele o Trump e o Bolsonaro, fato que parece demonstrar uma de duas possibilidades excludentes: 1) Ele não é assim tão poderoso, e portanto não é Deus; ou, se é, não é um deus de infinita bondade e misericórdia, podendo ser então o seu contrário.

A história da Filosofia o meu neto que trate de pesquisar, assim que (ou se) tomar gosto pela coisa.

Meu objetivo agora é apenas discutir a potencialidade de qualquer pessoa, com pelo menos meia dúzia de neurônios, pensar com a própria cabeça, sem ficar repetindo as teses ou antíteses da chamada doxa ou, o que dá na mesma, a opinião filosófica popular de boteco, as ideias de segunda mão, as convicções do tipo Moro, e as soluções simples para problemas complexos, erradas quase sempre, por suposto.  

Partirei da ideia geral de que as diversas correntes filosóficas, e não apenas as ocidentais, têm basicamente a preocupação de descrever o mundo de diferentes maneiras. De onde viemos, para onde vamos, qual o sentido da vida, qual é a cotação do dólar, por que o preço da gasolina está tão alto, o que é a verdade, essas perguntas tidas como clássicas desde o histórico dia em que, segundo a tradição, Tales de Mileto caiu dentro de um poço.

Tales, considerado bem antes do Olavo de Carvalho o primeiro filósofo do mundo ocidental (de occidere, cair, pôr-se – não o Tales, o Sol), explicou que olhava para o céu fazendo cogitações sobre a verdade quando tropeçou numa irregularidade da via pública e caiu na cisterna.

Em termos mais técnicos, Tales disse que a causa necessária e suficiente de sua desventura teria sido o desnível na calçada, e que seus efeitos foram o tropicão e o tombo. Disse também que o fator de risco do acidente, a greta ou paralelepípedo solto, era de responsabilidade da secretaria de obras da prefeitura de Mileto, motivo pelo qual ameaçou o prefeito com uma ação por danos físicos e morais. O prefeito contestou. Disse que talvez o fator de risco fosse de sua responsabilidade, mas que a causa do pequeno desastre foi a distração do próprio pensador, que nunca olhava por onde andava ou vice-versa. (Como se vê, a dialética acompanhou a Filosofia desde o início).

A verdade - Uma moça que passava pelo local no exato momento do acontecido registrou história bem diferente no Boletim de Ocorrência. Ela contou que desde o começo Tales procurava algo no fundo do poço, tendo caído no seu interior ao escorregar no chão molhado. Acrescentou que, conversando com outras mulheres que ali costumavam ir para abastecer seus potes, cântaros, talhas e moringas, descobriu que Tales queria encontrar nada menos do que a verdade. O maior espanto, concluiu a moça, é que ele supôs tê-la encontrado, e a prova é que desde então passou a dizer, para quem quisesse ouvir, que a água é o princípio de todas as coisas, a substância primordial do mundo. Unindo a verdade à água, Tales julgou ter demonstrado a pureza da origem do Universo. 

Pensadores muito posteriores a Tales continuaram a acreditar nessa hipótese, que influenciou, entre outros, Pôncio Pilatos, Ignaz Philipp Semmelweis, Louis de Pasteur, Joseph Lister e, claro, Noel Rosa, o filósofo da Vila, compositor de um samba que homenageia essa rica tradição epistemológica:

A verdade, meu amor, mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
Que também faleceu por ter pescoço
O autor da guilhotina de Paris

Humor - Um dos capítulos do livro que dedicarei ao meu neto tratará do humor, assunto ligado à água desde sempre, na forma de lágrima e catarro (mau humor) e apenas na forma de lágrima (bom humor), quando a gente até chora de tanto rir.

O capítulo começa com o seguinte conto à guisa de ilustração:

Enxuta, esfuziante, serelepe, a sessentona Paulucha Krislov estava meio passada. Volta e meia sumia nas andanças pela casa os óculos, as piranhinhas, o vidrinho de Rivotril e até a escova de dentes. Preocupada, arranjou uma cordinha para os óculos.

Alívio!

Lembrou que desde criança costumava trocar o anel de uma mão para outra, ou, se não, enrolava no fura-bolo um fio colorido de tricô para se lembrar de alguma obrigação inadiável.

Um dia amarrou a escova de dentes num cordão e este no cinto do roupão. Depois foi a vez da piranha, de uma caneta e do cortador de comprimidos.

Em três meses o roupão parecia um armário de ferramentas. A cada passo fazia barulhos que lembravam uma carroça com mudança de pobre. Paulucha achou que estava na hora de procurar o médico. Anotou o compromisso para o dia seguinte com batom, no espelho do banheiro.

Evocações - Não sei que impressão lhes causa essa historinha, que certamente poderá acontecer com qualquer um de nós, se, e somente se, a gente escapar da Covid-19.

A mim o conto evoca as páginas mais apaixonantes do Montaigne sobre a condição humana, reunindo a alegria contida e o êxtase das melhores conquistas e dos momentos mais sublimes à miséria das dores nos rins empedrados, do sangue esvaindo das feridas nos combates, das lágrimas derivadas de algum descontentamento.

Fico pensando também em A Cerimônia do Adeus da Simone de Beauvoir, em que ela relata os cuidados que dispensou ao Sartre já no final da vida, ele se desmanchando quase cego, sem os dentes, com incontinência urinária e os intestinos soltos por causa de remédios bravos.

O grande filósofo do existencialismo, informa Simone, não tinha, paradoxalmente, uma relação muito harmoniosa com o próprio corpo, e assim tentava se abstrair, como se fosse possível, na esfera do puro espírito ou, como ele diz, na pura subjetividade. Eis o pedaço de um diálogo sobre o tema:

Simone - Lembro-me, também, que você teve uma dor de dentes terrível, na Itália, dor que você tentava controlar através da ioga. Você dizia: basta isolá-la; a dor está presente, mas só existe a dor e isso não se espalha pelo resto do corpo.

Sartre - De fato, eu pensava que era possível quase suprimir a dor, assimilando-a à subjetividade. No fundo, a relação subjetiva de mim para comigo mesmo não devia ser muito agradável, já que eu considerava que se podia suprimir da dor seu caráter de dor, assimilando-a à subjetividade pura.

Simone - O que você está querendo dizer é que a sua presença corporal não lhe deve ser agradável, de vez que exatamente você a assimilava à dor. E quando doente você era resignado, ou impaciente ou se sentia satisfeito, no fundo, por relaxar um pouco, já que estava cansado e ficava de cama? Ou, ao contrário, sentia-se irritado por ser obrigado a ficar de cama?

Sartre - Havia de tudo. Isso dependia do período da doença.

Comédia - Para não derrubar na depressão o meu neto nem os 14 ou 15 leitores e leitoras que vão se interessar pelo meu livrinho, vou anexar algumas historinhas mais amenas, como o diálogo do juiz Maxwell (Liam Dunn), o pai de Judy (Barbra Streisand), com o oficial de Justiça (Graham Jarvis), na comédia Essa pequena é uma parada, de Peter Bognadovich:

Juiz Maxwell - você está vendo essa pílula amarela aqui?
Oficial de Justiça - Sim, senhor.
Juiz - Sabe pra que serve?
Oficial - Para quê, senhor?
Juiz - Pra me lembrar de tomar esta pílula azul!
Oficial - E a azul é para quê, senhor?
Juiz – Sei lá! Eles ficaram com medo de me contar!

Tragédia – A desgraceira que o País enfrenta necessariamente entrará no livro quando a gente chegar ao tema da Política para tratar de responder à questão sobre o melhor regime para o alcance do bem comum.

Como sair do buraco em que estamos? Como opor a Virtù (o nosso poder de fogo político potencial) à Fortuna (as circunstâncias políticas que nós herdamos)? 

Que tal discutir a adoção de uma República democrática e popular do tipo adotado pela Comuna de Paris há 150 anos, em nada parecida com o regime de tortura, racismo e cloroquina atual?

Que tal se em nossa República houvesse drástica separação da Igreja dos assuntos do Estado, admitindo-se porém a mais ampla liberdade de culto em ambientes privados?

Que tal se o Estado já não fosse um Estado na acepção tradicional com as castas burocráticas hoje penduradas nele?

Que tal se não houvesse mais patrões nem exploração de mais valia? Que tal se o trabalho deixasse de ser alienado?

E se a gente adotasse a igualdade de gênero, e acabasse com o racismo estrutural, a xenofobia, e qualquer tipo de discriminação, aliás, como já prevê a Constituição de 1988?

E se a Cultura e a Educação, em bases científicas, fossem postas ao alcance de qualquer pessoa, independentemente de idade?

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Discutir Filosofia não é discutir o sentido da nossa vida e da vida das pessoas que convivem conosco em nossa aldeia? E por acaso a Terra não é a nossa aldeia?

Vixe, parece que vai ser difícil escrever esse livro! Vou ter que desenvolver em poucas páginas um argumento sólido desde o Big Bang até o Brasil do Bolsonaro e da Damares para tentar demonstrar ao Zeca que talvez nem tudo esteja perdido, se ele, obviamente, decidir estudar a Onda de maneira filosófica, séria, antes que ela vire um Tsunami, e aí babau!

A Onda estará nas últimas páginas do livro.

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