O fim precoce da missão de um major da cloroquina na capital do Amazonas
“A Grande Arte” com cloroquina e tudo em Manaus

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

O major Fonseca partiu de Brasília para Manaus na primeira semana de janeiro. Fazia parte da missão precursora da Operação Cloroquina. Estava um trapo quando chegou ao aeroporto Eduardo Gomes, por volta das 23h.  Enjoado, não tinha conseguido comer nada durante a viagem. No hotel, tratou de tomar duas garrafinhas de água de coco, preocupado com as taxas de açúcar. Era diabético e hipertenso. Tomou um banho, se acalmou, e desabou na cadeira diante da mesinha com luminária para continuar a ler A Grande Arte de Rubem Fonseca.

Fã de romances policiais, o major era ainda mais fã do comandante Fonseca. Dizia brincando que talvez fossem parentes. Costumava inflar a hipótese com o fato de sua família ser originária de Santos Dumont, cidade vizinha de Juiz de Fora, a terra do escritor.

A leitura foi ficando tão empolgante que o major se esqueceu do enjoo e, depois, da fome. Já passava das duas quando aconteceu o acidente.

Na altura da história em que Mandrake, o advogado detetive, conta que depois do xadrez a sua nova obsessão agora era a faca, a “primeira criação tecnológica do homem”, Fonseca, frenético, acabou quebrando em dois o marcador do livro, feito de plástico duro. Uma das metades, afiada como dente de piranha, saiu rasgando a palma de sua mão esquerda. Um talho largo e profundo, de onde brotou um igarapé de sangue. Baita susto! A pressão caiu. Faltou ar. A vista embaçou. O major despencou sobre a mesinha e o livro deslizou no chão.

Corta para a manhã seguinte. Fonseca tinha pedido na portaria que o acordassem às 7h. Como não atendia as insistentes chamadas do interfone, pediram à camareira, depois de quase uma hora, para bater na porta do major. Nada. E nenhum barulho de chuveiro. Extrapolando a obrigação, a moça resolveu abrir a porta. Égua! Lá estava o Fonseca estatelado sobre a mesa, a poça de sangue no chão e o livro mostrando a metade do marcador como se fosse uma língua.

A camareira não se abalou talvez porque, como descobri, é também fã de casos de crimes e leitora da Agatha Christie. Antes de dar o alarme, foi tomada pela irresistível curiosidade de abrir o livro na página marcada com a “língua”. Com extremo cuidado para não alterar a “cena do crime”, como relatou depois aos amigos.

Rapidamente botou os olhos na página manchada com as digitais do Fonseca, talvez a última que ele teria lido “antes de ser covardemente assassinado, ao que parece à traição”. Maria Júlia, esse é o nome da camareira, leu o seguinte depoimento de Mandrake, que a deixou cismada:

De volta ao hotel, lia meus sinistros livros. Uma coisa que me fascinava era o problema do sangue, a terrível quantidade que jorrava em qualquer manobra, do corte da garganta ou da subclávia, e que podia esguichar na boca ou nos olhos do matador; a necessidade de manter a boca fechada e os olhos atentos para não ter uma reação de nojo (o sangue é doce e enjoativo) ou para não ficar cego temporariamente; o som gorgolhante que podia sair da garganta do sujeito, impossível de ser evitado. Também era provável a emissão de fezes e urina, e o matador devia arregaçar a bainha das calças e as mangas da roupa para que não ficasse manchada de sangue (era sempre mais fácil limpar os próprios braços e os sapatos). Se o ataque fosse pela frente, o pescoço podia continuar como alvo principal, mas o coração também devia ser considerado uma alternativa excelente.

Consciente de que devia avisar a administração do hotel o quanto antes, para não dar nenhum motivo de ser envolvida “na trama”, Maria Júlia repôs o livro exatamente ao lugar de onde o havia catado, e tratou de ligar para o chefe.  

Seguiu-se o pampeiro usual – a chegada da ambulância do SAMU, as viaturas da polícia, os primeiros depoimentos etc. Assim que se viu livre da burocracia, Maria Júlia já estava, como se diz, xiringando a sua teoria para os colegas e a família. Todos a ouviram com a descrença de sempre.

Com a imaginação digna do Woody Allen, a camareira levantou a hipótese de que o narrador do romance do Rubem Fonseca – que ela não tinha lido e portanto não sabia que o advogado é um cidadão de bem – teria saltado do livro para a vida e daí, no momento seguinte, para a artéria no pescoço do major. “Pena que não deu tempo de checar”, disse esbaforida. “Vou ter de esperar o resultado do IML”.

Disse mais Maria Júlia, provocando risinhos amarelos entre os trabalhadores do hotel: “Eu acho que o assassino se apoderou da alma do coitado do hóspede para poder continuar entre nós, os vivos”. A Joana deu uma tossidinha, ameaçando contradizê-la, mas foi logo cortada: “Você sabe que isso pode ter acontecido, como naquele filme do Brad Pitt que assistiu lá em casa comigo… Como é que mesmo? Encontro Marcado”. 

O laudo saiu menos de duas horas depois da chegada do corpo no Instituto Médico Legal. A causa mortis do major Fonseca foi um infarto fulminante, provavelmente engatilhado por severa hipoglicemia e um nível baixíssimo de hemoglobina glicada.

Caso resolvido. Acontece que a versão de Maria Júlia logo se espalhou mais que o coronavírus na cidade de Manaus e municípios vizinhos, Novo Airão, Presidente Figueiredo, Rio Preto da Eva, Careiro, Iranduba, e, pasmem, até Boa Vista. Rá! É desse jeitim que surgem as histórias dos milagres, as fake news e também certos contos de entretenimento da subliteratura.

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