Antônio Carlos Queiroz (ACQ) -
Nos últimos anos eu pude comprovar o preceito de que a prática da tradução é a melhor maneira de compreender um poema. A lição parece óbvia mas envolve tremendas condicionantes. Os resultados dependem, por exemplo, do conhecimento que o tradutor ou tradutora tem da língua-fonte e da língua de chegada, e das prescrições das teorias de tradução (da equivalência, descritiva, polissistêmica, culturalista, Skopos, materialista histórico-dialética, pós-colonial etc) e das escolas literárias que ele ou ela frequenta (impressionista, estruturalista, neocrítica, recepcionista etc).
O que acontece quando o tradutor não é acadêmico mas um amador eclético que nem eu? Ora, a coisa flui de maneira desbragada, atropelando constrangimentos. Valha porém a observação dos estudiosos de que qualquer tradutor ou tradutora, seja da academia seja autodidata, sempre pode ser enquadrade numa escola ou noutra, ou ter os pés em várias. De toda maneira, permanecem de pé muitos limites.
Para encurtar a conversa, informo que nos meus exercícios de tradução me inspiro nas lições e práticas de gente como Umberto Eco (“Quasi la stessa cosa”), George Monteiro, Paulo Henriques Britto, José Lira, Augusto de Campos, Giuseppe Ierolli, Flávio R. Kothe, Amalia Rodríguez Monroy, Claire Malroux, entre outros e outras, tudo junto e misturado.
Que São Jerônimo me livre e guarde porque, como disse Sancho Pança, “al freír de los huevos lo verá", e, como dizem os ingleses, “The proof of the pudding is in the eating”, e como eu mesmo digo, a questão da aproximação & fidelidade se resolve na hora do vamos ver, isto é, no momento de confrontar o texto original com a tradução.
Ontem eu fui até as duas da madrugada tentando traduzir o poema abaixo de Emily Dickinson, um dos meus xodós, que está brilhando, na pele da moleca Hailee Steinfeld, na excelente série versão millennial da Apple TV (qualquer dia desses escrevinho uma crítica sobre):
After a hundred years
Nobody knows the Place
Agony that enacted there
Motionless as Peace
Weeds triumphant ranged
Strangers strolled and spelled
At the lone Orthography
Of the Elder Dead
Winds of Summer Fields
Recollect the way -
Instinct picking up the Key
Dropped by memory
Spoiler - Antecipo aqui como entendi esse poema escrito por volta de 1868, e depois conto os truques que mobilizei para compor a minha versão.
O poema trata da distinção entre a vivência e a sua memória. Emily Dickinson diz, basicamente, que, depois de muitas décadas, quem morreu será esquecido, assim como desaparecerão os próprios campos de batalha onde caíram os que participaram da guerra pela vida. O mato cobrirá os epitáfios dessa gente, narra o poema, a serem decifrados em tempos seguintes por curiosos que por lá passarão. Mas os ventos da renovação revelam os caminhos percorridos pelos que se foram, e o instinto, isto é, o impulso da comum natureza humana, agora decifra os seus segredos já dissolvidos na memória. Acho que é mais ou menos isso o que a Emily quis dizer.
Primeira estrofe - Na primeira tentativa que fiz ao verter a primeira estrofe, encontrei uma solução razoável para Place e Peace, mas acabei regularizando de maneira empobrecedora a sintaxe dos dois versos finais:
Depois de cem anos
Ninguém sabe o Espaço
Onde a Agonia atuou
Imóvel como a Paz
Ora, se a poeta quisesse essa dicção, ela simplesmente teria escrito algo mais direto e trivial do tipo:
After a hundred years
Nobody knows the Place
Where Agony enacted
Motionless as Peace
Por que razão, porém, ela optou por esse verso à primeira vista contorcido, com o advérbio de lugar pleonástico there?: “Agony that enacted there”. Tenho duas hipóteses não concorrentes. A primeira é que, com a sua sofisticação, a poeta quis figurar um complexo “Espaço Agonia”, que se apresentou naquele palco de maneira inerte como a Paz. A segunda hipótese é que ela quis distinguir o “Espaço” da “Agonia”, tendo essa atuado no cenário da Morte de maneira estática.
Com essas ideias na cabeça, compus nova versão, mais próxima do original:
Depois de cem anos
Ninguém sabe o Espaço
Agonia que atuou lá
Imóvel como a Paz
Algo porém me dizia que a estrofe podia ser melhorada. No quê? Depois de matutar, pimba!… achei que na transposição do verbo know, com outro de seus significados, “reconhecer”:
Depois de cem anos
Ninguém reconhece o Espaço
Agonia que atuou lá
Imóvel como a Paz
Com a noção do resgate dos campos que haviam sumido, ainda assim não fiquei completamente satisfeito. Mesmo sendo razoável a solução para a relação de “Espaço” com “Paz”, incluindo a rima frouxa (slant rhyme) “-paço – Paz”, optei pela substituição de “Espaço” por “Praça”, chegando um pouco mais perto do original. Foi o que fiz:
Depois de cem anos
Ninguém reconhece a Praça
Agonia que atuou lá
Imóvel como a Paz
Segunda estrofe - A segunda estrofe me deu uma canseira. Como vocês devem saber, a forma poética mais utilizada por Emily Dickinson é a do common meter ou hymnal stanza, característico dos cantos da igreja calvinista. Dickinson se familiarizou com os ritmos dessa forma ao frequentar em criança os cultos do sábado na companhia dos pais, de famílias da Nova Inglaterra de origem puritana.
No common meter, alternam-se versos de quatro pés (tetrâmetro iâmbico) e três pés (trímetros iâmbicos). O que interessa aqui é uma lição do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, para quem os versos de seis e sete sílabas dos poemas de cordel são os mais adequados para a transposição dos versos emilianos para o português brasileiro. Esses versos às vezes deslizam para oito e até nove sílabas, irregularidade muito comum também nas letras da música popular brasileira.
Por isso eu procurei, ao longo da minha versão, manter essa métrica, definindo, portanto, um limite. Outro parâmetro relevante preservado foi o das rimas, ainda que frouxas, oblíquas (slant), na segunda e na quarta linha de cada estrofe.
Reparem no verso “Weeds triumphant ranged”, que significa algo como “Ervas daninhas triunfantes se espalharam”.
Considerei que “mato” seria uma escolha melhor do que “ervas daninhas”, expressão comprida demais. Mas, se fosse manter no mesmo verso o adjetivo “triunfante” e ainda o verbo “se espalhar” ou “se espraiar”, estouraria a medida.
Até pensei em trocar “triunfante” pelo mais curto “ovante”, mas meu padrinho São Jerônimo me deu um puxão de orelha, desancando o surto patriótico no instante em que eu estava entoando o Hino da Proclamação da República: “Nosso augusto estandarte que, puro / Brilha, ovante, da Pátria no altar”! Af!
Labutei, labutei e finalmente cravei o verso “Cresceu triunfante o mato”.
O segundo verso, cheio de aliterações, me foi outro grande desafio. “Estranhos erraram e entoaram”, talvez? Além de romper o metro, achei que não deu muito grude o verbo “errar”, no sentido de perambular, vaguear. Num certo momento, achei uma síntese: “Errantes soletraram”. Os “errantes” entraram aí como peregrinos que já haviam percorrido os velhos caminhos. E o verbo “soletrar” compareceu com o sentido imediato do correspondente em inglês, da leitura letra a letra no esforço de decifração das mensagens escritas nas lápides. Por fim, fiquei com a solução “Caminhantes soletraram”.
Foi uma pena eu não ter conseguido reproduzir as sibilantes aliterações do verso Strangers strolled and spelled, mas tradução literária é assim mesmo, um jogo de perdas e ganhos.
Um desvio relax: a palavra “sibilantes” lembra os sons assoviados da letra esse ao longo desse verso, mas bem que a gente podia inventar uma falsa etimologia, atribuindo o termo à voz das sibilas, as antigas profetisas gregas e latinas, que também enfeitiçavam o freguês com seus encantamentos (spell), né!
Retomo o fio da meada: nos dois versos seguintes – At the lone Orthography/ Of the Elder Dead – enfrentei a expressão “solitária Ortografia”. Mas por que “solitária”? A “Praça Agonia” não é um cemitério com inúmeras tumbas? Optei então pela transposição mais lógica de lone com outro de seus sentidos, “retraído”, “retirado”, “esconsa”, “longe do alcance”.
A estrofe resultou assim finalmente:
Cresceu triunfante o mato
Caminhantes soletraram
A retraída Ortografia
Dos Finados Anciãos
Terceira estrofe - O maior problema da terceira estrofe estava no primeiro verso – Winds of Summer Fields (Os Ventos dos Campos de Verão). A conotação aqui é a renovação propiciada pelas lavouras semeadas nas terras amolecidas e férteis dos campos do verão. Nessa nova estação, seguinte ao inverno, os antigos caminhos se tornam mais arejados, e os instintos, isto é, os impulsos condicionados pela vivência ou pela natureza humana, despertados, se tornam capazes de decifrar a chave, ou seja, de desvelar os segredos das gerações passadas, já perdidos na memória.
Um problema: eu tenho uma pinimba com as quatro estações. Como sempre vivi no Planalto Central, jamais consegui entender fisicamente as diferenças entre a primavera, o verão, o outono e o inverno. Por aqui eu conheço apenas as duas estações verificadas nesse ângulo do planeta – as águas e a seca –, conforme registrou em 1894 o astrônomo e engenheiro belga Luís Cruls no Relatório da Comissão Exploradora do Planalto do Central.
Por esse motivo, o verão é algo meio abstrato e a expressão “Campos de Verão” pouco significa para mim. É claro que correndo ao dicionário eu sou capaz de chegar a uma compreensão intelectual dessa estação, mas prefiro traduções mais viscerais. Nesse caso específico, por sorte eu me lembrei de um poema do Patativa de Assaré, *O Poeta da Roça*, cuja primeira estrofe flui assim: “Sou fio das mata, cantô da mão grossa,/ Trabaio na roça, de inverno e de estio. / A minha chupana é tapada de barro, Só fumo cigarro de paia de mío.”
Com esse rompante ou repente na cabeça, fiz uma negociação: mantive a ideia do verão (estio), desprezei o efeito da “estrangeirização” e desse jeito resolvi em termos brasileiros – “Roças de Estio” em lugar de “Campos de Verão” – a equação do verso.
A última estrofe do poema ficou assim conformada:
Os Ventos nas Roças de Estio
Rememoram a via -
O Instinto encontra a Chave
Perdida na memória
Confissão: antes de tascar o verbo “encontrar” no terceiro verso, eu tentei o verbo “reaver” – “O Instinto reave a Chave”. Achei ótima a solução assonante, antes de descobrir decepcionado que os gramáticos não abonam essa forma desse verbo defectivo. Tudo bem, é esquisito dizer “reavo” mas por que não se pode falar ele ou ela “reave”? A razão é que “há” é a forma da terceira pessoa do presente do verbo “haver”, que gerou o verbo reaver (re-haver). Caralho!
Com a transcrição do poema inteiro da Emily Dickinson em brasileiro aí embaixo, vou encerrar este papo, ao que parece mais pernóstico que cabeça.
Peço a compreensão de todos vocês, com a esfarrapada desculpa de que as crônicas são veículos que os escribas usam para jogar conversa fora como se estivessem conversando miolo de pote com os amigos e amigas numa varanda ao cair da tarde, as andorinhas voejando arriba pra lembrar que uma só não faz verão e talecoisa.
Depois de cem anos
Ninguém reconhece a Praça
Agonia que atuou lá
Imóvel como a Paz
Cresceu triunfante o mato
Caminhantes soletraram
A retraída Ortografia
Dos Finados Anciãos
Os Ventos nas Roças de Estio
Rememoram a via -
O Instinto encontra a Chave
Perdida na memória