É um espanto que a gente tenha de lutar pelo direito da moradia debaixo dos viadutos
Assim caminha e mora a Humanidade

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Na terça-feira, 2/2, o País ficou chocado com a cena do padre Júlio Lancelloti, da Pastoral do Povo da Rua, quebrando a marretadas as pedras pontiagudas que a prefeitura de São Paulo mandou cimentar debaixo de um viaduto que serve de abrigo para moradores em situação de rua. O padre é um campeão dos Direitos Humanos em geral e dos direitos do povo pobre em particular, e por esse motivo tem sofrido ameaças de morte, denunciadas inclusive pelo Papa Francisco.

Eu também fiquei chocado, por razão ainda mais funda. Percebi na hora que o gesto do padre Lancelotti teve como objetivo garantir o direito de as pessoas em situação de rua dormir debaixo dos viadutos da cidade de São Paulo!

É um espanto que o Brasil tenha descido tão baixo, a ponto de ser necessário lutar pelo direito da moradia na sarjeta. O lógico, justo e humano não é lutar pela moradia digna para todos e todas e ponto? Ou teremos de dividir a briga em duas etapas, um “programa mínimo”, de habitação popular nas ruas e pontes, e um “programa máximo”, de moradia para o povo nos cafundós da periferia? 

Espanto não é bem o termo adequado. Morar na sarjeta é a norma na capital dos barões do café desde sempre, e no resto do País. O último censo da prefeitura de São Paulo, de 2019, identificou mais de 24 mil pessoas nessa condição, das quais, metade assistida na rede de assistência social, e a outra, vivendo debaixo de viadutos e nas calçadas.

Uma das maiores urbanistas do Brasil, Raquel Rolnik, previu, em fevereiro do ano passado, que se as autoridades não tomassem providências emergenciais para conter o problema, com números claramente subestimados, logo a cidade contaria com mais de 50 mil pessoas morando nas ruas. Rolnik referia-se ao agravamento das principais causas da equação – as remoções e a perda de moradias pela população pobre e miserável – sem cogitar, naquela altura, os efeitos extras da pandemia, que apenas começava.

Iniciativas emergenciais para o caso deviam, obviamente, começar pela maior e imediata oferta de abrigos municipais e de moradias populares, mas, atenção, adequadas às reais necessidades da população excluída.

“Quando nos referimos à rede de proteção capaz de acolher e apoiar os mais vulneráveis em momentos de crise, estamos falando da enorme falta que faz uma política pública, integrada e proativa nesta conjuntura”, disse Raquel Rolnik no seu blog. “As respostas que temos hoje: baseadas em ofertas de pacotes setoriais como são os abrigos ou a oferta de moradia em parcerias público-privadas que nada têm a ver com a demanda ou condição das pessoas; ou as políticas de saúde mental baseadas no internamento e reclusão já se mostraram ineficientes.”

NIMBY - Na conjuntura em que não têm mais qualquer perspectiva de emprego, os moradores em situação de rua fazem parte de um contingente populacional que pode ser descartado a qualquer momento, literalmente. A classe média paulistana, em geral, não admite sequer que os abrigos para essa gente, exatamente como acontece nos casos das usinas de tratamento de lixo ou de esgoto, sejam instalados em seus bairros. Assim que tomam conhecimento de uma iniciativa do tipo, logo entoam o clássico Not In My Back Yard (No meu quintal, não)!

Pior, as redes de autoproteção e sobrevivência organizadas pelos pobres logo se tornam alvos do racismo estrutural e do higienismo desses mesmos cidadãos de bem, tudo disfarçado com apelos à “segurança pública”.

Os miseráveis, esses radicais e extremistas que teimam em sobreviver, estão entalados entre a ativa omissão dos poderes públicos e o sentimento de lesa-humanidade dos eleitores dos chefes desses mesmos poderes (cheirosos!). Por isso, na minha opinião, nenhum milagre da Igreja nem a justa e santa ira do padre Júlio Lancelotti são capazes de sequer arranhar o problema. Obviamente, reconheço que a Pastoral do Povo da Rua é um dos raros recursos de socorro que sobraram para a gente obrigada a morar ao léu, e por isso merece toda a solidariedade dos que estão do lado de cá na luta de classes.

Raquel Rolnik costuma dizer que a situação dos moradores em situação de rua é o retrato mais fiel da administração de uma cidade. Estão aí para quem tem olhos de ver os retratos das administrações de Bruno Covas e do ex-prefeito e governador João Dória.

Vamos agora a um intervalo cultural, com a canção do Dorival Caymmi:

Eu nasci pequenininho
Como todo mundo nasceu
Todo mundo mora direito
Quem mora torto sou eu

Para encerrar o nosso programa, caros e caras ouvintes, leio na Folha de S. Paulo de 30 de outubro passado que o prefeito Bruno Covas está muito bem instalado num apartamento de 70 metros quadrados na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, alugado por R$ 4.000,00 mensais.

É um “apê de quarentão com filho adolescente”, disse ele, decorado pela ex-mulher, Karen Ichiba. O imóvel tem vistas para o Memorial da América Latina, o terminal Barra Funda, o Allianz Parque e a serra da Cantareira.

A decoração, escreveu a repórter Marília Miragaia, tem um jeitão utilitário – mesa de jantar, rack para TV e sofá. Aqui e ali, objetos pessoais – ímãs de diferentes países e fotos cobrindo a geladeira, entre elas a do avô Mário Covas, ex-governador. Na prateleira ao lado, a réplica do capacete de Ayrton Senna. A única escrivaninha é usada pelo filho, Tomás, de 15 anos, cuidador de Volpi, o cachorro da casa.

Complemento, sempre segundo a Folha: o prefeito cozinha macarrão, ovo mexido e hambúrguer. No freezer tem comida congelada com opções fit. O prefeito também pede refeições pelos aplicativos. (Eu imagino que entregues por um motoboy que qualquer dia desses será obrigado a se mudar para debaixo da ponte).

Casa “casa” mesmo é a do Dória! - O apartamento de Covas é coisa de classe média “média”, digamos. Casa mesmo, assim, na lata, é a mansão do governador João Dória, situada na rua Itália no Jardim Europa.

Com 3.304 metros quadrados de área construída num terreno de 7.031 metros quadrados, é uma das dez maiores casas da cidade de São Paulo. A fachada, de 83 metros de comprimento, é decorada com a bandeira do Brasil. Diz a Folha que atrás do muro tem campo de futebol e quadra de tênis. A sala de jantar é forrada de quadro de Di Cavalcanti. Em 2016, Dória pagou R$ 285 mil de IPTU.

Ah, o governador não se mudou dessa mansão para a residência oficial do Palácio dos Bandeirantes quando assumiu o posto, em janeiro de 2019. Porém, para se sentir chez soi no Palácio, resolveu reformar a suíte máster. Mandou forrar o piso de vinil escuro e pintar as paredes de não sei quantos tons de cinza (o jornal não diz).  O projeto da reforma foi assinado pela designer Jóia Bergamo (morou!). 

Os “móveis luxuosos” que adornam o cafofo, no valor de R$ 372 mil, foram angariados pelo governador como “doações”, informa a Folha.

Caríssimxs, assim caminha e mora a Humanidade.

E pra esquecer, nóis cantemos assim, co Adoniran Barbosa: ouça aqui

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