Na minha casa é o Beethoven na terra e o Beethoven no céu (Ilustração: Chicago Symphony Orchestra)
Beethoven, o homem e o universo

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) -

O poema de Carlos Drummond de Andrade dedicado ao “meu caro Luís” termina com o seguinte dístico:  

Boto no pickup o teu mar de música,
Nele me afogo acima das estrelas.

Se você quiser ter essa mesma sensação basta ouvir, ou melhor, entrar na Sonata 32 Opus 111. São dois movimentos. No primeiro, sombriamente furioso, patético, é como se a gente tateasse um terreno desconhecido em busca de saída. No segundo, luminoso, revelador, é como se estivéssemos sendo guiados por um longo caminho até as nuvens e de lá, finalmente, voltássemos a pisar o chão firme. Comovente!

A biógrafa Jan Swafford diz, em Beethoven, Anguish and Triumph, que “essas últimas páginas são música além das palavras, além da poesia e da filosofia, quase que além da vida terrena, mas abrangendo tudo isso”.

A Sonata 32 é uma espécie de testamento, a última peça que Beethoven compôs para o piano, seu instrumento favorito. Aqui ele se manteve fiel a uma   ideia filosófica do Iluminismo, segundo a qual o ser humano, pequena criatura natural, torna-se gigante ao contemplar o Universo com as lentes da razão.

Exatamente sobre isso, Beethoven havia anotado com diversos pontos de exclamação, em seu caderninho de anotações, a frase famosa de Immanuel Kant, retirada de sua Crítica da Razão Prática: “Duas coisas nos ocupam a mente com admiração e reverência, sempre renovadas e crescentes, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão lida com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”. Insistindo, com outras palavras: o indivíduo constituído pela era que a Revolução Francesa inaugurou, igual a todos os outros perante a lei, mira e mede o Cosmos, embora consciente da  sua estatura insignificante.  

Esse pensamento se desdobra, dois anos depois, na apoteótica Sinfonia Coral, a Nona, com os versos de Schiller conclamando a Humanidade a se abraçar (Seid umschlungen, Millionen”) com a esperança de que todos os seres humanos um dia se tornem irmãos (“Alle Menschen werden Brüder”).

A trinca - Ludwig van Beethoven foi batizado no dia 17 de dezembro de 1770, quando se costuma comemorar seu aniversário. Especula-se que ele teria nascido no dia anterior, mas não há documentos para comprovar. Nessa ocasião, o futuro imperador Napoleão Bonaparte tinha um ano e quatro meses, e o futuro filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, pouco mais de três meses.

Por que essas menções? Porque esses três personagens, herdeiros da Revolução Francesa e, digamos, particulares manifestações do Espírito do Tempo, iriam provocar grandes mudanças na cultura e na geopolítica do mundo ocidental.

Quando Napoleão entrou com as suas tropas na cidade alemã de Jena no dia 13 de outubro de 1806, véspera da Batalha de Jena, Hegel estava fazendo a revisão final da Fenomenologia do Espírito, obra que viraria a filosofia alemã de cabeça pra baixo. Em carta a um amigo, o filósofo contou que viu Napoleão passar bem debaixo da sua janela. “Eu vi o Imperador – esse Espírito do Mundo – deixar a cidade para fazer o reconhecimento das tropas; de fato é uma sensação maravilhosa ver um indivíduo semelhante que, concentrado assim em um ponto, montado em seu cavalo, estende-se sobre o mundo para dominá-lo”.

Três anos antes, Beethoven já havia virado o mundo da música clássica de cabeça pra baixo com a estreia da Sinfonia nº 3 no palácio do príncipe Lobkowitz, na Boêmia, hoje República Tcheca. Com a peça, monumental, ele  inaugurou a era do Romantismo.

De início, Beethoven dedicou a obra a Bonaparte, mas depois, em maio de 1804, quando o primeiro cônsul da França se proclama imperador e passa a se chamar Napoleão, o compositor troca a dedicatória para Lobkowitz, uma manobra esperta como se veria a seguir, quando a francofobia tomou conta da Áustria depois da derrota do País na Batalha de Austerlitz (dezembro de 1805).

Beethoven havia cogitado instalar-se em Paris, de onde esperava conquistar o mundo com mais visibilidade. Acabou, porém, rendendo-se ao patrocínio dos príncipes-mecenas do Império Austro-Húngaro. Viena continuaria a ser o eixo em torno do qual girava o seu mundo, onde ele seria chamado de o “Napoleão da Música”.

Marzão - O seu vasto “mar de música” inclui, entre as obras para orquestra, nove sinfonias, cinco concertos para piano, um concerto para violino; um triplo concerto para piano, violino e violoncelo; aberturas; música para teatro, como o Egmont, de Goethe, e o balé As Criaturas de Prometeu. Entre as obras para piano, 32 sonatas, 17 quartetos de cordas; dez sonatas para violino e piano; cinco sonatas para violoncelo e piano; seis trios para violino, violoncelo e piano; conjuntos de variações (Variações Diabelli, por exemplo); e diversas obras de câmara. Entre as obras vocais, uma ópera (Fidélio); duas Missas; a Fantasia Coral; o ciclo de canções An die ferne Geliebte (Para a amada distante); 49 arranjos de canções folclóricas; três cantatas etc. E ainda tem as obras ligeiras (as Bagatelles para piano; a Sinfonia da Batalha (A Vitória de Wellington) etc etc.

Depois que se instalou o mito do semideus nos últimos dois séculos, quem é capaz de avaliar hoje, com o mínimo de racionalidade, a obra de Beethoven, “o maior de todos”? Não faltam idólatras de um lado nem detratores de outro.  São poucos porém os críticos mais objetivos que sempre se arriscarão a  “alcançar as nuvens do erro em lugar do céu da verdade”, como diria Hegel. O próprio Beethoven, que fez questão de cultivar o seu mito, certa vez disse ter atingido “tal grau de perfeição que me encontro acima de qualquer crítica".

Do seu jeitão hiperbólico característico, Theodor Adorno, filósofo, sociólogo e musicólogo da Escola de Frankfurt, também contribuiu para a canonização do nosso caro Luís. Escreveu que “em um sentido similar àquele no qual só existe a filosofia hegeliana, na história da música ocidental só existe Beethoven”.

Segundo Adorno, “A música de Beethoven (da fase intermediária, ou madura, mais ou menos até 1818, NA) é imanente como a filosofia, engendrando-se a si mesma. Também Hegel não possui nenhum conceito exterior à filosofia e é, frente ao contínuo heterogêneo, em certo sentido desprovido de conceito, ou seja, seus conceitos são explicados, como os musicais, apenas a partir de si mesmos”.

Qual é o conceito imanente da música ocidental? A tonalidade, diz Adorno. “Afinal de contas, o que é a tonalidade? Uma tentativa de submeter a música a uma lógica discursiva, a uma espécie de conceitualidade genérica. E isso de modo tal que as relações entre acordes idênticos deva significar sempre o mesmo para ela. Trata-se de uma lógica das expressões ocasionais. Toda a história da música mais recente é a tentativa de ‘preencher’ essa lógica musical extensiva: Beethoven [foi] aquele, no entanto, que desenvolveu seu próprio conteúdo a partir dela mesma, too sentido musical a partir da tonalidade”.

Daniel Pucciarelli, que escreveu uma “breve reflexão” sobre a extraordinária frase de Adorno, e de onde extraí as citações do filósofo, resume: “Beethoven teria sido … o primeiro a realizar o desiderato próprio à história da música ocidental de organização total da forma unicamente segundo princípios intramusicais”. Beethoven teria reproduzido o sentido da tonalidade a partir da liberdade subjetiva.

Adorno e a sua Filosofia da nova música sofreram críticas em confronto com os novos modelos de Stravinsky e dos “novos tonalistas” como os americanos Philip Glass e John Adams, e o russo Alfred Schnitkke, por exemplo. Mas aí já são outros quinhentos mirréis, um papo para filósofos e músicos, “coisas que nós não entende nada”, como diria o Adoniran Barbosa.

Pessoalmente, se tivesse que escolher um só e único músico, eu escolheria o Beethoven. Questão de idolatria e de temperamento. Que me desculpem as outras estrelas da constelação – o Bach, o Scarlatti, o Mozart, o Haydn, o Chopin, o Liszt, o Tchaikovski, o Debussy, o Ravel, o Manuel de Falla, o Mahler, o Shostakovich, o Villa-Lobos, o Ernesto Nazareth, a Chiquinha Gonzaga, o Pixinguinha, o Tom Jobim, o Gershwin, o Nino Rota, o Ligeti…

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