Antônio Carlos Queiroz (ACQ) -
Não sei se vocês se lembram da minha vizinha, a Dona Santina, terrivelmente católica e militante pró-vida, que tempos atrás me questionou pelo aborto equivocadamente lançado num pedido de hemograma de investigação da minha trombose (leia o mencionado artigo aqui). Pois não é de ver que ela atacou de novo ontem à noite?
Faltavam alguns minutos pras 10h e a Cristina estava na sala praticando exercícios de Lian Gong, coisa que ela faz há anos para prevenir dores na coluna.
A cena é animada. Os movimentos são feitos diante de um vídeo musicado, com o mestre entoando as instruções e contando cada gesto:
Kuò xiōng! (Levante o peito!) Yī – èr – sān – sì – wǔ – liù...
Por mal dos pecados, eu estava lendo no sofá alguns poemas do presidente Mao, que eu mesmo havia traduzido há tempos da versão em inglês de Willis Barnstone e Ching-Po Ko de The Poems of Mao Zedong (University of California Press, 2010):
No lusco-fusco verde-azul viçosos pinhos vejo
serenos sob nuvens burburinhas.
Nasceu no céu a gruta dos deuses,
vasta graça da rajada na escarpa carapinha.
Pois foi aí que a Dona Santina chegou, já furibunda assim que abrimos a porta. Ela ficou mais fula ainda quando a provoquei com um “boa noite!” em mandarim: Wǎnshàng hǎo, Dona Santina!
– Vocês comunistas são terríveis! Nem disfarçam mais, falam e cantam aos berros! - disse ela, pousando sobre a mesa uma cheirosa broa de milho que acabava de tirar do forno.
A gente riu, e eu corri pra cozinha pra fazer um chá e rebentar pipoca, lembrando as palavras rituais da minha mãe, próprias para a ocasião: “Rebenta pipoca no cu da vizinha! Rebenta pipoca no cu da Cristina! Rebenta pipoca no cu do ACQ”!
Regada a chá de jasmim (outra provocação minha!), a conversa logo descambou pra eleição do Biden (“fraudada”, evidentemente) e pra vacina contra a Covid. De novo a Dona Santina desfiou o rosário de negações da vacina “contra o vírus chinês”: “chip para controlar o cérebro dos povos do Mundo Livre”, “formatação do genoma” etc etc.
Roda Viva - Por feliz coincidência, logo ia começar o Roda Viva com a infectologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute nos Estados Unidos; com o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas; e com a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz. Eu convidei a Dona Santina para assistir o programa, mas ela refugou. “Tudo fake news, seu Antônio! Vou perder meu tempo, não!”
Eu tratei de me afastar dela, deixando o sacrifício de fazer a sala pra Cristina. Notei, porém, que a Dona Santina de vez em quando desviava os olhos pra televisão, suntando! O tempo foi passando e ela ali, mais corujando o Roda Viva do que falando com a Cristina.
Lá pelas tantas, a Dona Santina estatelou os olhos no doutor Dimas, que respondia a uma pergunta sobre a “vacina chinesa”. “Primeiro… não se trata de uma vacina chinesa, é brasileira, do Instituto Butantan. (…) A vacina da AstraZeneca (empresa anglo-sueca que desenvolve a vacina de Oxford) é produzida na China, a matéria-prima é produzida em Wuhan. A matéria-prima que usamos é produzida em Beijing. As duas fábricas, tanto da Sinovac como a que foi contratada pela AstraZeneca, foram inspecionadas recentemente pela nossa Anvisa. Esse é o ponto principal: o rótulo (de ‘chinesa”) foi colocado… com finalidade política e ideológica”.
Depois a Dona Santina pregou a atenção numa fala da doutora Margareth Dalcolmo, que, voltando ao mesmo assunto, tascou: “A China é o maior produtor de insumos em biotecnologia do mundo. Se formos levar na ponta da faca, é tudo chinês!”.
Meio sem graça, a Dona Santina riu amarelo e logo tratou de inventar uma desculpa pra cair fora. Deu boa noite, a Cristina deu boa noite, e eu também, com dois acréscimos em mandarim, um “muito obrigado” (Xièxiè!), e um “volte sempre” (Bìng jīngcháng huílái)!
Caímos na risada quando a vizinha desapareceu no fundo do corredor. Terminamos de ver o Roda Viva e, antes de me preparar pra cair no sono, recitei mais um poema do presidente Mao:
A Grua Loura
É vaga e vasta a China onde rolam os nove rios.
O horizonte é a linha escura que o Norte e o Sul costura.
Neblina azul e chuva.
Como cobra ou tartaruga morros guardam o rio.
Foi-se a grua loura. Aonde?
Ficaram a torre e o lugar pros viajantes.
Ofereço vinho à corrente borbulhante – os heróis se foram.
No meu peito brota um maremoto – um encanto.