Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Na virada do ano, uma dor excruciante tomou conta da parte interna da minha coxa direita, irradiando-se pela virilha. O ecodoppler colorido tascou: “Extensa trombose venosa profunda sub-aguda da veia femoral comum até a veia poplítea e a crossa da safena magna direita”.
- E agora, doutor?
- Agora você vai tomar anticoagulante para evitar TEP, AVC, essas coisas.
A possibilidade “dessas coisas”, embolia pulmonar e derrame cerebral etc, que podem ser provocadas por um coágulo desprendido, entrou no meu radar já obstruído de preocupações. Imagine, qualquer dia desses eu amanhecia com a boca torta ou puxando ar que nem um peixe fora d’água ou como o Trump esbaforido no Balcão Truman logo depois de sair do hospital militar Walter Reed. Gasp, gasp, ninguém merece!
De anticoagulante, o meu cirurgião vascular receitou rivaroxabana, e, para melhorar a circulação, um composto de diosmina com hesperidina, além de um creme à base de cumarina para massagear a perna.
- Daqui a seis meses, vamos suspender o anticoagulante para investigar se você tem trombofilia!
- Atração por elefantes, doutor?
Vermelho que nem um fruto de Capsicum annuum, meu circunspecto angiologista, um oficial da Aeronáutica, acabou rindo. Depois me explicou que os exames definiriam se tenho ou não fatores que facilitam a formação de trombos ou coágulos, inclusive por herança genética.
Adicto pra sempre - Bem, os resultados saíram no início de setembro. Descartaram o fator V de Leiden, no caso, um legado da miséria de meus pais, mas, em compensação, distinguiram dois agentes trombogênicos - o antígeno lúpico e o excesso de homocisteína - que, combinados, me condenam a ficar sócio da Bayer pelo resto da vida. Oficialmente, sou agora dependente químico de Xarelto, uma condição melhor, convenhamos, do que se fosse do Zycklon B, outro produto da famigerada farmacêutica alemã.
Ah, se fosse só isso! O pedido do hemograma acabou me custando chateações extras, como vocês verão. Não percebi na hora, só quando cheguei em casa: ao redigir a solicitação, o médico fez um crtl c crtl v do pedido de uma paciente anterior, de maneira que a justificativa saiu assim: “Paciente com história familiar de trombofilia e dois abortos espontâneos, evoluindo com edema e dor em MMII (membros inferiores)”.
Dois abortos? A Cristina, que estava recebendo a visita da vizinha, também em quase-quarentena, morreu de rir quando viu o pedido (foto abaixo). Me chamou pelo nome completo, fingindo braveza: “Antônio Carlos, você vai ter que me explicar isso direitinho”! Acontece que a Dona Santina, terrivelmente católica e militante pró-vida, levou a coisa a sério e veio com tudo pra cima de mim.
- Seu Antônio, que história mal contada! O que o senhor andou aprontando?
- Eu?
- Que remédios o senhor tomou?
- Xarelto e Daflon, uai!
- Ah, o senhor deve ter tomado Cytotec!
- Não, Dona Santina. Só esses dois.
- Por acaso o senhor não andou tomando chá de carrapicho, quebra-pedra, carqueja, buchinha do norte, arruda?
- Não, só chá de canela e hortelã! Acho que camomila também.
- Há, eu sabia! Esses também são abortivos, seu Antônio! Que vergonha!
- Mas, Dona Santina, que absurdo a senhora desconfiar de mim! Foi só um errinho de edição do meu angiologista!
- Anjologista? Fazedor de anjos, seu Antônio! O senhor não me engana!
- Mas, Dona Santina, eu sou homem!
- Não me venha com desculpas! O senhor sabe muito bem que não há limites para a ciência moderna!
Depois dessa eu desisti de discutir com a Dona Santina e fui pro scriptorium rever o clássico do Billy Wilder que tenho arquivado no computador, Quanto mais quente melhor! Eu estava me sentindo exatamente como a Daphne/Jack Lemmon no momento em que o maroto do Osgood/Joe E. Brown pronuncia a última frase da última piada do filme: “Nobody’s perfect”!