Christopher Maltman nas penas do Papageno da Flauta Mágica no Metropolitan Opera de Nova York, dezembro de 2016.
Dois contos do álcool da velha

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

I

Seu Agenor de Castro, 92, me recebeu para falar dos tempos em que caçava nas matas da Serra de Jaraguá até os anos 60, entrando nos 70. Mandou me servir um café bem goiano, ralo e doce, com biscoito de queijo. Tudo ficou secundário depois que eu percebi, rompendo a penumbra, a dúzia de gaiolas penduradas na parede do fundo da sala.

Encerrado na primeira, um casal de flautas doces, cujos gêneros distingui pelas cores, uma bem mais clara. Noutra, três apitos de trair inhambu. Na terceira, um chamariz de jacu. Era uma coleção sortida – jaó, juriti, macuco, marrequinha, perdiz, saracura. À guisa de periquitos, mais de dez assovios coloridos de aniversário numa das gaiolas.

“Faz anos que eles não cantam”, disse o seu Agenor. “Acho que é de tristeza”!

Mal voltei pra casa, acendi, nessa ordem, um CD do Dalgas Frisch, O Passarinho de Pano do Villa-Lobos, e os Oiseaux exotiques do Messiaen.

II

Para Mariana Cintra Rabelo

Ninguém pôde imaginar as consequências da rejeição daquele primeiro bife acebolado. Virou repulsa, aversão, abominação, tirante as cebolas. A menina tomou gosto por vegetais.

Além das rodelas de cebola, salsinhas, alfaces, agriões, talos de toda sorte de verduras, feijões com as cores do arco-íris... A botânica toda na cozinha não saciava a voragem da garota.

Um dia a mãe notou que a cara da guria estava ficando verde que nem suco de limão com couve. Efeito da luz mortiça da copa? Não, a luz do sol realçava a clorofilha. A pele foi ficando encortiçada. Um dia os cabelos começaram a se alastrar como lianas de cipó.

Como se fosse natural, e era, a mãe passou a regá-la.

A menina se aboletou num cantinho da sala em que batia o sol da manhã. Uma vez por semana varriam as folhinhas caídas.

As visitas estranhavam, mas não ousavam muitos comentários. "Linda como as minhas samambaias!", disse uma vizinha. "A diferença é que ela exige adubo orgânico", respondeu a mãe, dona Martha Florinda.
 

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