Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Eu sou de uma época em que fazia parte do protocolo e dos bons costumes responder às cartas recebidas. Carta era uma ou um conjunto de várias mensagens que se escrevia num pedaço de papel, com ou sem pautas, para se comunicar com uma pessoa morando longe. Era remetida através dos Correios depois da gente comprar selos para pagar a tarifa, a chamada postagem. Os selos, uns papeizinhos denteados, com motivos geográficos, históricos ou literários, com goma arábica seca lambrecada no verso, eram lambidos para serem pespegados no envelope ou sobrecarta com o nome e endereço do destinatário. Quando, por acidente, um selo grudava na boca, a gente corria o risco de ter a língua remetida no lugar da carta.
Colecionar selos usados constituía uma arte chamada filatelia, bem mais inocente que a zoofilia, com algumas vantagens. Em vez de lições sobre a fisiologia e os sentimentos e expressões dos animais, a gente aprendia o nome das capitais de todos os países do mundo, a biografia dos últimos astronautas e cosmonautas, o ranking dos atletas das Olimpíadas e os novos e velhos ganhadores do Prêmio Nobel, além de alguma curiosidade sobre a Casa Imperial do Japão, por motivo da visita ao país do príncipe herdeiro.
As cartas, também chamadas missivas ou epístolas, começavam com um cumprimento e terminavam com um tchau ou adeus. No miolo, a gente contava as novidades que tínhamos acabado de viver, e perguntava sobre os últimos acontecimentos vivenciados pelo interlocutor.
A troca de cartas era chamada de correspondência, quer dizer, uma longa conversação intervalada por um dia ou vários, semanas, meses e até anos, entre duas pessoas, sobre ideias, as últimas notícias e planos de negócios. Era possível, claro, envolver terceiras pessoas no intercâmbio. Bastava remeter-lhes cópias das cartas do primeiro destinatário, motivo às vezes de grandes confusões, planejadas ou não. E havia também, em sentido figurativo, as cartas abertas, divulgadas num jornal de grande circulação para celebrar ou constranger uma pessoa, física ou jurídica, ou apoiar uma causa. Saudade da época em que o Tribunal Russel denunciava as ditaduras do Brasil e do Chile!
Cartas com bombas anexas, ricina ou antrax eram usadas como artefatos de guerra, mas os Correios logo desenvolveram mecanismos para detectar as ameaças, o que não impediu o presidente Obama de ser um dos alvos do terrorismo postal.
História - Para não ser omisso e não estender demais a crônica, anoto rapidamente o papel das cartas e dos correios na história mundial: 1) todos os grandes impérios desenvolveram sofisticados sistemas de correios, o que foi aproveitado, por exemplo, por São Paulo, para inventar o Cristianismo escrevendo epístolas (cartas em grego); 2) existe uma vasta literatura epistolar que inclui, por exemplo, as Cartas Persas, do Montesquieu; Os Sofrimentos do Jovem Werther, do Goethe; As Ligações Perigosas, do Choderlos de Laclos; Drácula, do Bram Stoker; e Crônica da Casa Assassinada, do Lúcio Cardoso; 3) a excelência dos serviços prestados pelos Correios alemães foi uma das inspirações de Karl Marx na sua proposta do socialismo científico.
(Faço um parêntese para dizer que recebi hoje pelo Dialogpost, um serviço dos Correios alemães, sete tíquetes para assistir gratuitamente as apresentações do Digital Concert Hall da Filarmônica de Berlim. No programa desta sexta-feira, 28 de agosto, sob a regência do maestro russo-austríaco Kirill Petrenko, tem a Passacaglia, op. 1, do Anton Webern; a Sinfonia nº 1 em Dó Menor, op. 11, do Felix Mendelssohn; e a Sinfonia nº 4 em Mi Menor, op. 98, do Johannes Brahms).
Variações - Bilhetes eram variações das cartas, mais informais e expeditos, encaminhados para um destinatário que se encontrava na mesma sala ou prédio do remetente. Se a pessoa estivesse em outro prédio ou mesmo em outro bairro, a gente mandava um office boy levar a mensagem, contando com a sua conivência, até mesmo para esperar e trazer a resposta. Uma vez um desses moços de recados esperou tanto que acabou se casando com a destinatária, a traidora!
Nas festas de São João havia o correio elegante, uma espécie de bilhete com o objetivo socialmente aceito de dar uma cantada na pessoa-alvo. Em vez de flechas, a gente atirava um pedaço de papel, com ou sem o número do telefone, mas com algum versinho besta do Vinicius de Moraes ou aquele trecho do Fernando Pessoa dizendo que todas as cartas de amor são ridículas, só para impressionar. A resposta podia ser um correio ainda mais elegante ou a completa e fria indiferença, muito mais dura de morder do que a crosta caramelizada das maçãs de amor, servidas durante o ciclo junino.
Mesmo com a concorrência de outros meios desde a invenção do telégrafo no século 19 (telegramas, cabogramas, caligramas, murilogramas), as cartas só passaram a ser definitivamente substituídas a partir dos meados dos anos 80 do século passado pelos chamados correios eletrônicos ou e-mails. Uma novidade é que passamos a usar o símbolo @ (arrroba) para indicar de onde estávamos mandando a mensagem ou msg através de um computador de mesa. (Até hoje não sei a razão do peso desse símbolo em língua portuguesa). O meio mudou mas não o hábito de responder às novas mensagens, como sempre havíamos feito com as cartas. Mal acabava de chegar um e-mail, você o respondia. Com a multiplicação exponencial deles, as respostas iam sendo postergadas, a ponto de a gente ter de reservar um tempo do expediente para expedir respostas e mandar os e-mails do chefe e os nossos próprios, agora sem precisar lamber os selos e, em alguns casos, as botas.
Ticagem - Décadas se passaram até a gente cair no meio de troca de mensagens chamado Whatsapp ou Telegram. Mensagem enviada, de imediato apareciam dois tiques cinzas indicando que o celular do destinatário a havia recebido. Se os pauzinhos ficassem azuis, era sinal de que a vítima havia lido o seu post. Logo você era tomado pela ânsia da resposta, que podia vir ou não logo a seguir.
Tudo isso mudou: a gente pode agora desabilitar a ticagem, deixando o remetente na dúvida se recebeu ou não. Pior, agora não é mais obrigatório responder. Uma explicação é que os zaps são enviadas aos magotes, para uma lista de centenas de pessoas. Como no mais das vezes são repasses de mensagens recebidas de dezenas de outras pessoas, seria preciso um tempo insano para dar respostas a todo mundo.
Essa explicação não resolve um mistério: mesmo quando você manda mensagens personalizadas, os destinatários já não se sentem obrigados a lhe responder. Ficam mudos (ou mute, como se diz nas lives). Se você quer que a pessoa realmente responda, o jeito é lhe dar um telefonema, dizendo que lhe mandou um zap e que ela a leia, por favor! A bem da verdade, a gente já fazia isso com os e-mails. Em vez de uma, a gente mandava duas mensagens para garantir o fechamento do circuito, e demonstrar o quanto é crucial a redundância em qualquer sistema de comunicação.
Mão única - Eu não me conformo com a falta de respostas aos meus posts, mas compreendo: a maioria do pessoal da minha lista é de gente mais nova, que não conheceu o protocolo da correspondência da época das cartas. Além disso, esses jovens recebem centenas de zaps todo dia. Não dá mesmo tempo de dialogar com todo mundo. A comunicação agora é de mão única: você manda uma mensagem já sabendo que ela poderá até ser lida mas não necessariamente respondida.
Às vezes fico aflito, com pensamentos da época das cartas. Será que ofendi a pessoa com o meu humor proverbial-catastrófico? Tirante as hipóteses dos parágrafos anteriores, em geral, sim. Tenho perdido vários amigos e amigas por causa dos meus comentários heterodoxos, que de fato sempre furam a nossa bolha quando são levados a sério. Já não fico abalado com isso porque sei que restam mais de 7,8 bilhões de amigos a conquistar mundo afora (como bem diria o Zygmunt Bauman), o que não acontece com uma boa tirada ou piada, coisa rara e difícil de compor. “Boa”, bem entendido, secondo me, porque o humor também sofreu drásticas mudanças nos últimos tempos. Eu sou de uma época passada em que havia ironia, entrelinhas, double entendre. Hoje o discurso é bem mais plano, que nem a Terra, onde reinam as fake news.
O diabo é que eu continuo a enfrentar surpresas constrangedoras. Acontece, por exemplo, quando alguém me responde a um zap que enviei há dois ou três meses. Mesmo não tendo ainda a memória muito afetada pelo alemão, convenhamos… Imaginem, você faz um comentário hoje e a pessoa só vai lhe responder em outubro ou novembro que vem. As estações podem se misturar e pode dar o maior bode, tipo aquele que acontecia com aquela moça dos Anos Dourados, do Chico Buarque, que ligava afobada pro ex-namorado, lhe deixando confissões no gravador, e percebia que seria engraçado “se tens um novo amor”… Vai que a nova namorada apertasse a secretária eletrônica!
How! - Isso me faz lembrar também a história do Touro Sentado, que, após vencer as tropas do general Custer na Batalha de Little Bighorn, já ia se retirando para o Canadá, quando encontrou no caminho um tenente do exército, muito estropiado. Para ser poupado, o tenente se empertiga com o que lhe sobrou de dignidade e respeitosamente saúda o grande chefe: “How”! Touro Sentado ouve mas nem tchum! Segue a marcha sem dar pelota pro tenente. Cinco ou seis depois, de volta aos Estados Unidos, reencontra o militar no meio da rua e o reconhece. Olho no olho, responde: “Fine”!
Pois é, acho muito estranha essa nova cultura digital em que já não há mais correspondência, diálogo ou troca de figurinhas. Bem, troca de figurinhas tem. Volta e meia alguém me manda umas palminhas, uns kkkk!, e uma pletora de emojis que resumem sentimentos, estados de espírito, likes ou dislikes. Eu mesmo faço isso toda hora, é claro, além de copiar e também compor meme stickers para ficar ligado nas paradas da galera.
Às vezes, confesso, me sinto o próprio Marco Antônio mandando cartinhas de hieróglifos para a Cleópatra. Outras vezes, um príncipe chinês do serviço de meteorologia rabiscando ideogramas sobre as próximas chuvas, que vão cair bem antes da invenção da imprensa.
Dou um ou dois muxoxos e ligo no YouTube a Isaura Garcia cantando a Mensagem de Aldo Cabral e Cícero Mendes:
Quando o carteiro chegou
E o meu nome gritou
Com uma carta na mão
Ante surpresa tão rude
Nem sei como pude chegar ao portão
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