Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Analiso aqui, muito rapidamente, na virada da sexta 22 para o sábado 23 de maio, três posições sobre o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril liberado ao público pelo ministro Celso de Mello na tarde de hoje (22/5):
1) Os bolsominions ficaram satisfeitos com as cenas escabrosas da reunião dos ministros porque confirmam o que todos já sabiam: que o presidente deles é boca suja, armamentista, evangélico fundamentalista, pró-família patriarcal, patriota fascista pró-americano. Receberam a mensagem de ordem unida, e é mesmo de ordem unida que se trata.
Naquele dia o ministério estava visivelmente desunido, após a queda do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta; com a insatisfação de Bolsonaro com a performance do Moro, que evitava a interferência direta do Bolsonaro na Polícia Federal para proteger os filhos; devido à atuação pífia do Guedes, a quem os ministros militares apresentaram o Pró-Brasil (um pum que saiu do PAC da Dilma); com as divergências entre o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro, e a ministra Damares, em torno do projeto dos resorts com cassino (“Pacto com o Diabo”, disse ela); com a provável preocupação da ministra Tereza Cristina da Agricultura diante dos ataques aos chineses que compram a soja brasileira etc.
Já se contavam naquele dia três mil brasileiros mortos pela Covid-19, mas a reunião não tratou do assunto, a não ser quando o novo ministro Nelson Teich, disse que estava preparando um novo plano de combate à doença, a começar pela comunicação. Em contrapartida, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu que os seus colegas “passassem a boiada”, isto é, publicassem uma “baciada” de normas infralegais, sem precisar do Congresso, para simplificar procedimentos, aproveitando-se do fato de que a imprensa estava mais ocupada na cobertura da Covid-19 que nos malfeitos do governo federal. É claro que a palavra “malfeitos” aí não foi dita pelo Salles...
E as pequenas? - O único ministro que pareceu estar percebendo a realidade foi Rogério Marinho, o cara da reforma da Previdência, hoje no Desenvolvimento Regional, e que me parece próximo do Centrão. Marinho disse que o governo precisava “abandonar dogmas” para, por exemplo, injetar dinheiro público na salvação de pequenas empresas e não apenas nas grandes. “Essa pode ser uma catástrofe que pode nos afundar, ou ser uma onda para a gente surfar, uma alavanca para recuperar o país.”
Em um mês, desde então, muita coisa mudou. O Moro caiu e abriu-se uma investigação contra ele mesmo e contra o presidente da República, que resultou na divulgação desse vídeo e que levou o empresário Paulo Marinho, o suplente do senador Flávio Bolsonaro, a também depor e apresentar provas da interferência do Bozo na Polícia Federal.
O panorama econômico piorou, o dólar beira o R$ 6, e estima-se a queda do PIB da ordem de até 10%. O discurso de Guedes de retomar as reformas perdeu completamente o objeto. O Pró-Brasil esfumou-se. Em grandes traços: o governo está completamente sem rumo, no mato sem cachorro.
O novo ministro da Saúde caiu e o seu lugar foi ocupado por um general de brigada, seguido por uma tropa de militares na direção de postos chaves da pasta. O número de casos de infectados pelo coronavírus saltou para 331 mil, atingindo 3.488 municípios (62%), e o número de mortos já passa dos 21 mil. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil tornou-se o novo epicentro da doença no mundo.
As relações com a China, que já vinham se deteriorando por conta dos ataques do deputado Eduardo Bolsonaro e do ministro Eduardo Araújo, das Relações Exteriores, pioraram, porque a China passou a comprar a soja dos americanos e não a do Brasil, por força de um compromisso com os Estados Unidos. Agora, a coisa vai ficar ainda pior, pois frações dos trechos vetados pelo ministro Celso de Mello permitem deduzir o que se falou contra aquele país: o ministro da Educação, Abraham Weintraub, por exemplo, disse que odeia o Partido Comunista Chinês, e que não quer ser escravizado pelos chineses etc.
Resumindo: Bolsonaro reafirma com a divulgação desse vídeo o seu discurso perante a sua militância, mas não deverá ganhar nenhum eleitor a mais com isso. Ao contrário, ele acabou de perder, logo depois da divulgação do vídeo, um porta-voz importantíssimo, o apresentador Datena, da Band, dizendo que nunca mais pretende entrevistar o presidente. Datena ficou puto com o trecho do vídeo em que o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, denunciou a empresa por “querer dinheiro”. Disse Guimarães, contando um encontro com representantes da Band: “O ponto é o seguinte: vai ou não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Ah, não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Passei meia hora levando porrada, mas repliquei". Na manhã do sábado, o senador goiano Kajuru, do Cidadania, também pulou fora do barco.
2) Os simpatizantes do Moro ficaram satisfeitos com a divulgação da quase íntegra do vídeo porque, na opinião deles, vários trechos confirmariam a narrativa do ex-ministro de que o presidente Bolsonaro, tentou, dolosamente, interferir na gestão da Polícia Federal. Somados às provas oferecidas pelo empresário Paulo Marinho, e corroborados pelos fatos subsequentes à queda de Moro (troca do diretor geral da PF e de seu superintendente no Rio, esses trechos de fato reforçam a posição do ex-ministro.
O episódio da possível requisição do telefone do presidente Bolsonaro para ser periciado, a pedido do PDT, PSB e PV, agregou mais nitroglicerina à ação. Reagindo de maneira precipitada, o general Guido Heleno lançou uma nota-ameaça à Nação, afirmando que “O pedido de apreensão do celular do Presidente da República… seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder, na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional do País. … tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Que “consequências”? Vai chamar o jipe com o cabo e o soldado para invadirem o Supremo?
O próprio Bolsonaro afirmou que jamais entregaria o celular à Justiça, e que só o faria se fosse um rato. O ministro Celso de Mello esclareceu, então, que não tomou qualquer decisão no sentido de ordenar a busca e apreensão dos celulares de Bolsonaro, de seu filho Carlos Bolsonaro, do ex-diretor da PF, Maurício Valeixo, do ex-ministro Sérgio Moro e da deputada Carla Zambelli. Na verdade, afirmou, na condição de relator do Inquérito 4.831/DF, “limitou-se a meramente encaminhar ao Senhor Procurador-Geral da República, que é o órgão da acusação, a “notitia criminis”, com esse pleito de apreensão (Pet 8.813/DF), formulada por 03 (três) agremiações partidárias (PDT, PSB e PV)”. O ministro do Supremo disse, sem citar o nome, que o general Guido Heleno se manifestou de maneira precipitada.
O caso Moro, pelo que se vê, deverá render novos capítulos (e mais desgaste ao Bozo) até que o Procurador Geral da República tome a decisão de abrir ou engavetar o processo.
3) O pessoal que considera Moro pior que o Bolsonaro para a democracia ficou frustrado com a divulgação do vídeo. Disse que a peça não contém a famosa “bala de prata”, capaz de eliminar o lobisomem: se o cara não é um rato, deve ser um lobisomem, né!
Essa gente disse também que Moro nunca soube produzir provas, especializado que é nas “fortes convicções” e no domínio do fato etc. Além disso, a turma voltou a lembrar a aliança de Moro com a Rede Globo que, agora, estaria divulgando a versão do interesse do ex-ministro.
Pessoalmente, eu acho esse pessoal um porre, alienado da realidade. Achar que o Moro, derrubado do Ministério da Justiça, sem qualquer posto de relevância política no momento, é pior do que o Bolsonaro, que continua sendo o presidente da República, é uma bobagem. E achar que o Moro poderá vir a ser um candidato presidencial imbatível em 2022 é só um chute, pelo menos por enquanto, na minha modesta opinião.
Os fatos devem ser analisados como são concretamente, não como a gente gostaria que fossem.
Ora, a briga de brancos entre Moro e Bolsonaro nos interessa porque, no mínimo, desgasta o Bolsonaro. A tese do fortalecimento do Moro tem de ser analisada, mas não necessariamente neste momento. Pode esperar. O Bolsonaro é que deve ser o nosso foco, o nosso alvo, o motivo de nossas maiores preocupações.
Queda - Os companheiros cultivam essa ideia extravagante porque não têm paciência histórica. Gostariam, como eu, que o Bolsonaro caísse da poltrona presidencial hoje mesmo, junto com o vice Mourão. Essa hipótese, por óbvio, só seria factível se a chapa da dupla fosse cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Ali correm seis processos com o objetivo de cassar a chapa Bozo-Mourão. O que dá mais caldo, segundo a repórter Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico, é o que trata do disparo de mensagens falsas durante a campanha. Duas investigações em curso podem pressionar esses processos. Uma apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Segundo Fernandes, “não tem repercussão processual para o TSE, mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo do impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia”.
A segunda investigação, continua a repórter do Valor, é “aquela conduzida no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer”.
Sempre segundo a Maria Cristina Fernandes, o artigo publicado pelo general Mourão dias atrás teria sido um aviso às instituições da República de que as Forças Armadas não engoliriam a “saída TSE”.
Obstáculos - Além desse obstáculo, há outro, que é a composição dos julgadores. O processo teria que ser aberto pelos votos de quatro ministros. Três votos poderiam estar garantidos pelos ministros do Supremo com assento no TSE. Mas a obtenção do quarto voto dependeria de uma complicada equação que inclui a recondução de ministros do TSE nos próximos meses, com pressões principalmente sobre o ministro Sérgio Banhos, e também o poder de barganha de Bolsonaro, que poderia tentar neutralizar o ministro Luiz Felipe Salomão, oferecendo-lhe a vaga a ser aberta no Supremo com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello.
Depois da abertura do processo, seria necessário que um relator com firmeza suficiente desse prosseguimento ao processo. Mais adiante, seria preciso resolver um problemão: se a cassação ocorrer no primeiro biênio do mandato (até o final do ano), haveria a convocação de novas eleições. Se ocorresse no segundo biênio, a eleição, indireta, seria convocada em 90 dias, “na forma da lei”. Acontece que ainda não há lei regulamentando a questão. Como votar essa lei em meio à pandemia?
E depois, quem vai escolher o futuro presidente? “O Centrão repaginado” por Bolsonaro, diz Maria Cristina Fernandes, lembrando que os mandatos de Davi Alcolumbre e de Rodrigo Maia se encerram em fevereiro.
A saída do TSE só continua na mesa, diz a repórter do Valor, porque as outras opções parecem tão ou mais difíceis.
E a renúncia? - Quais seriam as outras opções? O impeachment é uma, a renúncia é outra. O impeachment está descartado por enquanto. Bolsonaro tem mais do que os 172 votos necessários para barrar o processo na Câmara, e é exatamente por essa razão que ele está indo à feira para comprar mais alguns deputados do Centrão, abandonando de vez o discurso anticorrupção. Quanto à renúncia, alguém aí acha isso viável?
A pesquisa Ipespe, encomendada pela XP Investimentos, divulgada na última quinta-feira, mostrou que 50% dos brasileiros acham o governo Bolsonaro ruim ou péssimo. Em janeiro, esse índice era de 39%. A aprovação, que era de 32% em janeiro, agora é de apenas 25%. 57% dos brasileiros acham que a economia está no caminho errado, e 68% acreditam que o pior está por vir no que tange à pandemia do coronavírus.
Há outras pesquisas que avaliam um pequeno aumento de popularidade do Bozo entre os muito pobres, agradecidos pela concessão do auxílio dos R$ 600, que atribuem ao presidente (o Guedes queria dar só R$ 200) e não ao Congresso Nacional. Essa tendência deverá ser reforçada com o pagamento da segunda parcela da ajuda, mas tende a cair depois disso, segundo os avaliadores.
Por outro lado, a caótica gestão por parte do governo federal da crise sanitária, que poderá vitimar até 100 mil brasileiros, combinada com os efeitos da divulgação do vídeo da reunião do dia 22 de abril, são dois fatores que com certeza vão desgastar ainda mais a popularidade de Bolsonaro.
Somem-se aqui também os efeitos das conclusões da CPI das Fake News, cujos trabalhos irão até o dia 24 de outubro, pelo sistema virtual; a provável queda do ministro da Educação, Abraham Weintraub, cujo fígado já foi pedido pelo Centrão; a abertura de vários processos contra vários ministros (Weintraub, Damares, Salles) por crimes contra a honra e de improbidade administrativa.
Outro provável processo, esse contra o presidente, teria como objeto um assunto gravíssimo: ele foi flagrado constrangendo os ministros da Justiça e da Defesa a liberar geral as armas para a população com fins políticos, o que é proibido pela Constituição. Para ser mais explícito: ele continua a conclamar os seus seguidores a se preparar para uma guerra civil!
A minha percepção é que, em vez de um terço, logo, logo Bolsonaro só estará contando com um quarto do eleitorado, como já aponta a pesquisa Ipespe.
E acho que as repercussões da divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril são, sim, devastadoras para o Coiso! Infelizmente, isso não significa que serão aproveitadas adequadamente pelos partidos de oposição.