Andriêi Miagkov, em Ironia do Destino: a curtição das decepções amorosas em forma de canções é um dado de todas as culturas? De algumas que eu conheço, sim!
Será que a dor de corno é universal?

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

No dia 9 de maio comemorei com uma música russa o Dia da Vitória dos Aliados contra a Alemanha nazista. Naquela Crônica & Aguda lamentei que a Guerra Fria tenha impedido a gente de conhecer melhor o repertório russo, que tem tantas afinidades com a nossa música, como assinalou várias vezes o Mário de Andrade.

O Mário não disse mas eu digo: o sentimentalismo meloso, a dor de cotovelo e a sofrência são três dessas semelhanças, às vezes envelopadas em melodias de grande qualidade.

O samba-canção, com raízes no bolero, é um parâmetro óbvio para essa comparação. Pensem por alguns instantes nas canções de rasgar as vestes (Vingança!) do Lupicínio Rodrigues interpretadas pelo Jamelão. Pensem na Maysa de O meu mundo caiu, na Elizeth Cardoso de Eu não existo sem você, na Ângela Maria de Orgulho. E gastem um tempo com o Cartola de As rosas não falam ou o Nelson Cavaquinho de A flor e o espinho. Para completar, ouçam a Gal Costa cantando Cuidando de longe da Marília Mendonça, acompanhada pela própria Marília!

Pensaram e ouviram? Então agora vocês estão preparados e preparadas para comprar (ou não!) o meu peixe. Distinto público, apresento a vocês a canção Eu perguntei ao freixo (Ya sprassil u yaseniá) em duas versões, a do cantor pop bielorrusso Alexander Rybak, e a original da cena do filme, na voz do russo Sierguiêi Nikitin.

Perguntei ao freixo? Ah, nada a ver com o Marcelo! O freixo aqui é uma árvore (Fraxinus excelsior) da família das oleáceas, endêmica em quase toda a Europa. Sua madeira, leio na Wikipédia, dura, densa e porosa, rica em agudos, é usada na fabricação de guitarras, incluindo os modelos mais sofisticados da Fender.

A letra - Lá vai a letra da música em português, traduzida por uma tal Érika Batista, com pequenas mudanças minhas:

Eu perguntei ao freixo,
Onde está minha amada?
O freixo não me respondeu,
Balançando a cabeça.

Eu perguntei ao álamo,
Onde está minha amada?
O álamo me cobriu
Com folhas de outono.

Eu perguntei ao outono,
Onde está minha amada?
O outono me respondeu
Com chuva torrencial.

À chuva eu indaguei:
Onde está minha amada?
A chuva caiu em lágrimas
Do outro lado da janela.

Eu perguntei à lua crescente,
Onde está minha amada?
A lua se escondeu numa nuvem,
Não me respondeu.

Eu perguntei à nuvem,
Onde está minha amada?
A nuvem se dissipou
No azul do céu.

Meu único amigo,
Onde está minha amada?
Diga onde se escondeu,
Sabe onde ela está?

Me respondeu o amigo devotado,
Me respondeu meu amigo sincero:
Ela era a sua amada,
Ela era a sua amada,
Ela foi a sua amada,
Mas agora é minha mulher.

Ridícula e absurda! - Que sofrimento! Como acontece com quase todas as músicas de dor de corno, essa também é ridícula. (Mas que canções ou cartas de amor não são ridículas, perguntaria o Fernando Pessoa). É também absurda. Imaginem o sujeito abandonado conversando com plantas, nuvens, estações do ano, para, no fim, descobrir que a bem amada fugiu com o melhor amigo! É pra acabar com os pequis de Goiás, diria uma dupla sertaneja de Anápolis!

A letra dessa canção foi escrita em 1928 pelo russo Vladimir Kirshon, um dramaturgo e escritor medíocre e carreirista da pior espécie, quando era um dos secretários da Associação Russa dos Escritores Proletários. Em compensação, a canção foi composta pelo georgiano Mikael Leonovich Tariverdiev, um dos maiores melodistas soviéticos, criador de 100 romanzas, quatro óperas e 130 trilhas sonoras para o cinema. Em 1975, Tariverdiev foi premiado pela Academia de Música Americana. Leva o seu nome o prêmio de melhor música do maior Festival Nacional de Cinema Russo, o Kinotaur.

A canção Eu perguntei ao freixo tornou-se popular na União Soviética em 1976 com o lançamento na televisão da comédia romântica Ironia do Destino, do diretor Eldar Riazanov. O filme costuma ser assistido até hoje na Rússia e nas ex-repúblicas soviéticas na passagem do Ano Novo, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos com o filme It’s a wonderful life (A felicidade não se compra) de Frank Capra.

Pensando aqui no final… Será que a dor de corno é universal? Tem no samba e no chorinho! Tem nas piesni russas! Tem no blues e no jazz! Tem na chanson française! Tem no son cubano! Tem no fado português! Tem no tango argentino! Caramba, pensando bem, o mundo é um bolero!

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