Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
Há 75 anos, a 8 de maio, perto da meia-noite, num salão do colégio de engenharia militar de Karlshorst, em Berlim, a delegação formada pelo marechal de Campo Wilhelm Keitel, o general almirante Hans-Georg von Friedeburg, e o coronel-general Hans Jürgen Stumpff, assinavam o termo de capitulação da Alemanha nazista perante o marechal soviético Gueorgui Júkov, o marechal chefe do ar britânico Arthur Tedder, o general americano Carl Spaatz, e o general francês Jean de Lattre de Tassigny.
Selava-se ali o fim da carnificina da II Guerra na Europa, que vitimou entre 70 milhões e 85 milhões de pessoas, tendo a União Soviética sofrido as maiores perdas, estimadas em 26,6 milhões de soldados e civis. A cessação do conflito na frente da Ásia e do Pacífico só ocorreria no dia 2 de setembro de 1945, quando o chanceler Mamoru Shigemitsu assinou a rendição do Japão a bordo do couraçado americano Missouri.
Naquela banda do mundo foi a China que pagou o maior preço, com 20 milhões de mortos. Para quem não sabe, os Estados Unidos perderam durante toda a guerra 419 mil e quatrocentas pessoas. O Reino Unido, 450 mil e novecentos soldados e civis.
Grande Churchill - Não pretendo recapitular os principais episódios e batalhas daqueles anos terríveis, 1939 a 1945. Nem avaliar o papel do primeiro-ministro Winston Churchill, que chegou ao fim da Guerra com a popularidade tão baixa entre os próprios britânicos que perdeu o governo em julho de 1945.
Também não vou falar da Resistência Francesa, que teve a participação de muitos mais estrangeiros, inclusive brasileiros, do que os franceses admitiam. Até há pouco tempo esse assunto era um tabu!
Não vou também recapitular a versão de Hollywood de que foram os americanos que ganharam a guerra e que o Dia D teve papel central na rendição da Alemanha. Na verdade, serviu, sim, para prevenir a captura de toda a Europa pela União Soviética.
Também não vou levar em conta nesta crônica a história muito mal contada de que foram os lançamentos das bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima que forçaram o Japão a assinar a rendição, como se não tivesse peso o ataque-surpresa do Exército Vermelho, com 1,6 milhão de soldados, contra as forças do Japão no Leste da Ásia, cujo objetivo final incluía a tomada da ilha de Hokkaido. Oportunamente, talvez eu escreva uma Crônica & Aguda para tratar da relevante e bem documentada tese do historiador nipo-americano Tsuyoshi Hasegawa, segundo a qual o principal fator da capitulação incondicional dos japoneses foi a entrada da União Soviética na Guerra do Pacífico, com a quebra do Pacto de Neutralidade assinado por Stalin com o Japão em abril de 1941 (Racing the enemy: Stalin, Truman, and the surrender of Japan, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2005).
Dois Soldados - Para comemorar o Dia da Vitória (8 de maio na Europa e nos Estados Unidos, 9 de Maio na Rússia), decidi apresentar a vocês a canção Escura Noite (Tiômnaya Notch), composta pelo prolífico compositor Nikita Bogoslovsky (mais de 200 canções, oito sinfonias, 17 operetas e comédias musicais, 58 trilhas sonoras e 52 músicas para teatro) para o filme soviético Dois Soldados, realizado em 1943 para servir como peça de combate contra o nazismo.
Dirigido por Leonid Lukov, o filme ressalta a camaradagem entre soldados de várias etnias em combate na frente de Leningrado, nas figuras de Sasha (Boris Andreyev) e Arkady (Mark Bernes). A partir dessa película, Bernes, ator e cantor de origem judia, virou uma estrela, destacando-se pela interpretação das principais canções da Guerra.
Escura Noite é uma das mais belas do cancioneiro russo, popularíssima até hoje. Ela conta a história de um soldado no campo de batalha que encontra nas lembranças da mulher e do filho recém-nascido a força e o ânimo necessário para enfrentar o inimigo.
Nota: ano passado a canção foi proibida na Polônia pelo diretor o Museu da Guerra em Gdansk, Karol Nawrotsky, por ser uma música “bolchevique”!
É pena que a Guerra Fria tenha impedido o Brasil de conhecer melhor a música popular russa, não apenas as da época da guerra. Perguntem ao Yamandu Costa o que ele acha!
O Mário de Andrade, que não era bobo, notou e anotou a influência dos russos sobre a música brasileira já em abril de 1927, quando ganhou do pintor russo Lasar Segall a canção Troyka, episódio que ele conta na Pequena História da Música (pág. 189, 9ª edição, Martins, 1980).
Parecenças - Em Música, Doce Música (Nova Fronteira, 2013), no capítulo As Bachianas, o Mário relata como foi sendo surpreendido pelas influências de Bach, Chopin, “um bocado de tudo”, na música popular brasileira. A certa altura diz: “Outro momento inesquecível de minha surpresa foi aquele em que, cantarolando, em companhia do pintor Lasar Segall, um aboio cearense que me fora comunicado naqueles dias, Lasar Segall continuou em russo a minha cantarola, pois as linhas melódicas coincidiam inteiramente entre o aboio e a canção russa. Aliás são numerosas e já muito denunciadas as parecenças entre a melódica russa e a brasileira. Dei exemplo disso no meu Ensaio sobre música brasileira e na antologia das Modinhas imperiais”.
Pra terminar, lá vai a minha versão mal-ajambrada da canção Escura Noite.
Abaixo duas versões na voz de Mark Bernes, depois me digam o que acharam!
Escura Noite
Tão escura noite, só balas assoviam na estepe,
Zune o vento nos fios, estrelas cintilam desmaiando -
Na escura noite, querida, você não dorme,
Do lado do berço, enxuga lágrimas discretas -
Como amo a fundura dos seus ternos olhos -
Ah, se eu pudesse alcançá-los com meus lábios -
A escura noite nos separa, meu amor,
Entre nós se estende a assustadora estepe negra -
Confio tanto em você, amada, minha querida -
Essa fé me protege das balas na noite escura -
Com ânimo e calma enfrento funestas batalhas -
Sei que me amará não importa o que suceda -
Não me assusta a morte, a encontrei mais de uma vez,
Ela está me rodeando justamente agora -
Sem dormir perto do berço você me espera -
Assim, eu sei, comigo nada vai acontecer –