Benedito de Spinoza: “Fiz um esforço cuidadoso para não ridicularizar, não lamentar nem desqualificar as ações humanas, mas para compreendê-las.”
Mais vivo que nunca o Spinoza, filósofo da alegria e da liberdade

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

São supersticiosas e têm ideias inadequadas as pessoas que acreditam em fake news, as que buscam charlatães como o tarado de Abadiânia para curar suas doenças, aquelas que fazem campanha contra as vacinas, e os idiotas que acreditam na Terra plana.

Essas pessoas são levadas a crer em absurdos por ouvir dizer, isto é, terceirizam as suas opiniões. Ou, então, elas se fiam em percepções vagas, superficiais, imaginativas, para analisar o que acontece no seu entorno. De experiências particulares sacam conclusões universais, por indução.

Ideias adequadas, isto é, as que se conformam com os dados da realidade, têm as pessoas que usam a razão para entender o que se passa à sua volta. Elas tiram conclusões das propriedades gerais ou universais das coisas e dos fenômenos, por dedução.

Um terceiro gênero de compreensão da realidade, que o filósofo Benedito de Spinoza chamava de “ciência intuitiva”, e que hoje a gente poderia traduzir livremente como “método científico”, é o que nos assegura o conhecimento verdadeiro. Aqui não basta submeter a coisa singular à razão. É preciso ir além na sua análise. Conhecer verdadeiramente uma coisa só é viável se você a destrincha a partir de suas causas.

Conhecimento - O primeiro gênero de conhecimento – derivado da nossa imaginação, quer dizer, do que os nossos sentidos nos apresentam de imediato – é a fonte de toda superstição, disse Spinoza. Não é que toda percepção desse gênero seja falsa. Afinal, graças às informações básicas que nos proporcionam os sentidos é que a gente toma a maior parte das decisões no dia a dia. Porém, é mais próprio da natureza racional humana agir com base em ideias adequadas, consequentes do juízo e do pensamento científico. Quem age de maneira consciente – sabendo que o que sabe é verdadeiro – não costuma ser levado ingenuamente pelas ondas nem aderir às manadas. Ao contrário, preserva a sua liberdade.

Divago sobre essa específica teoria do conhecimento porque amanhã, sexta, 21, é o aniversário da morte de seu formulador, o filósofo holandês Benedito de Spinoza, autor da monumental Ética demonstrada à maneira dos geômetras, um dos marcos fundadores da filosofia dos tempos modernos. Spinoza morreu em 1677, aos 44 anos,  de uma afecção pulmonar, na cidade de Haia, nos Países Baixos. Filho de uma família de judeus portugueses fugida das fogueiras da Inquisição, Spinoza tem sido considerado ou uma peste ou um santo nos últimos três séculos e meio.

Por que peste? Porque ele derrubou a base das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) ao demonstrar que as Escrituras nada têm de sagradas. Em vez de terem sido ditadas a partir do céu, foram redigidas por homens comuns, cheios não de graça mas de imaginação, ao longo de séculos. Desde sempre os intérpretes das Escrituras são, em geral, espertalhões (Malafaia e Edir Macedo, presente!) que buscam significados ocultos ou extravagantes nas entrelinhas da Bíblia para dominar o rebanho (ou matilha, alcateia) dos fiéis.

Deus sive Natura - Spinoza também contestou a noção do Deus pessoal de Israel, um senhor geralmente pintado com uma longa barba, ora colérico, ora magnânimo, cheio de vontades, preocupado com a sua adoração por homens e mulheres. Resumindo, Javé (ou Jeová) é uma divindade com a cara de seus adoradores, cuspida e escarrada. Para Spinoza, no entanto, Deus é a única substância existente (substância aqui significa apenas uma coisa que não depende de outra para ser), um ente impessoal, pilar e estofo do Universo ou de tudo o que existe. Deus se confunde com a própria realidade. “Deus sive Natura”, disse Spinoza, “Deus, ou seja, a Natureza”.

A substância única teria infinitos atributos, dos quais conhecemos apenas dois, a extensão (os corpos) e o pensamento. As coisas singulares – estrelas, planetas, vento, você, eu, árvores, micróbios – seriam expressões (modos) dessa substância.  

Para Spinoza, a alma é mortal como o corpo, do qual constitui a imagem; qualquer religião verdadeira está assentada num único princípio, o do amor ao próximo; e milagres não existem, simplesmente porque contrariam as leis da Natureza e, portanto, seriam até um insulto a Deus, cujas leis são exatamente as mesmas.  

Provavelmente por causa dessas ideias subversivas, heréticas, quando ainda estavam sendo polidas, Spinoza foi expulso de sua sinagoga aos 24 anos, e obrigado a se mudar de Amsterdã. Mais tarde, também por causa dessas ideias “perniciosas”, ele seria execrado pelos protestantes e censurado pelo Vaticano. Durante muito tempo foi perigoso ser acusado de “spinozista”, sinônimo de “ateu”.

Formação - Depois da excomunhão, Spinoza frequentou aulas de anatomia da Universidade de Leiden; estudou latim com Franciscus van den Enden, um ex-jesuíta que foi enforcado por participar de um complô contra o rei francês Luís XIV; estudou a obra de Maquiavel, de Hobbes, de antigos pensadores judeus, como Maimônides, de Descartes etc; poliu lentes de microscópio e telescópios, mais para pesquisar do que para ganhar dinheiro; e, ao longo de sua curta vida, manteve contato com alguns dos intelectuais mais proeminentes da Europa, entre eles o filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz, o primeiro secretário da Royal Society, Henry Oldenburg, e o astrônomo Christiaan Huygens.

Spinoza foi também considerado uma pestilência porque rompeu com a tradição filosófica, ao proclamar o monismo, a teoria da substância única, em confronto com o dualismo mainstream de Descartes, que respalda a ideia religiosa do espírito separado do corpo; ao dizer que a Natureza não tem finalidade, como defendiam Platão e Aristóteles; e ao proclamar que a humanidade é parte da Natureza, não estando acima nem dela separada, não sendo “um império dentro de outro”, como escreveu.

Paixões - Spinoza afirmou, contra os estoicos, que os homens não conseguem domar as suas emoções pela razão. Somos seres racionais mas, ao mesmo tempo, tomados por afetos (paixões, se negativos), queiramos ou não. Fazem parte! Um afeto negativo não pode ser controlado pela razão, mas somente por outro afeto mais forte e de sinal contrário. O ódio, por exemplo, só pode ser vencido pelo amor. A raiva, pelo bom humor; a arrogância, pela auto-ironia; o ciúme, pela confiança, e assim por diante.

 

Spinoza deu pano pra manga ao proclamar que não existe o que se chama de “livre arbítrio”, uma falsa ideia da liberdade. Os homens se consideram livres porque, embora sejam conscientes de suas ações, ignoram as causas que as determinam, disse ele.

Para o filósofo holandês, nós podemos conhecer o mundo nos mínimos detalhes, com certo esforço. Embora não inteiramente, digo eu, por motivos práticos: é vasto e tem detalhes demais. Mas, teoricamente, tudo o que existe pode, sim, ser conhecido. Segundo Spinoza, o real é racional, quer dizer, pode ser escrutinado pela razão e pela ciência. Nessa perspectiva, é uma cascata medonha o conceito da coisa-em-si incognoscível do Kant!     

Pernicioso por um lado, Spinoza foi adotado como santo secular por muitos pensadores, mesmo discordando dele. Talvez por causa de sua vida modesta, frugal, como a do seu precursor, o grego Epicuro (341 a.C. - 270 a.C.), franciscana, coerente com os princípios éticos que pregava. Anotem aí a latere: ele pode ter sido um santo, mas não careta. Bebia, fumava, fazia teatro, explodia de raiva de vez em quando, e tinha o prazer sádico-infantil de assistir aranhas caçando moscas. Fruto da cultura e educação de sua época, era machista, sim senhor!

Iluminismo radical - Algumas ideias de Spinoza – como a da defesa da república democrática como o melhor regime político – se mostraram muito sedutoras no início do século 18, quando a burguesia subia ao palco da história para revirar o mundo à sua semelhança. Segundo o historiador Jonathan Israel, Spinoza é o principal inspirador da ala radical do Iluminismo, sintetizada nas figuras dos filósofos franceses Julien Offray de La Mettrie e Denis Diderot, em contraste com os luminares da ala moderada, Voltaire e Jean-Jacques Rousseau, por exemplo. 

As ideias dos iluministas moderados acabaram prevalecendo na Revolução Francesa, mas, diz Israel, o principal desafio da Revolução, proclamado por Robespierre num discurso em novembro de 1792, era praticamente idêntico ao que foi identificado pelos iluministas radicais do início do século: “Le secret de la liberté est d’éclairer les hommes, comme celui de la tyrannie est de les retenir dans l’ignorance”. (“O segredo da liberdade é de esclarecer os homens, assim como o da tirania é de mantê-los na ignorância”.)

A filosofia de Spinoza – mesmo com as interpretações criativas e distorcidas, derivadas do influente verbete “Spinoza” do Dicionário Histórico e Crítico compilado pelo cristão calvinista Pierre Bayle, que o chamou de “cabalista”, “oriental”, “materialista” e “místico entusiasta” – foi levada em alta conta, de maneira raivosa ou entusiástica, pelos principais filósofos do idealismo e do pós-idealismo alemão, entre eles Friedrich Heinrich Jacobi, Moses Mendelssohn, Gotthold Ephraim Lessing, Friedrich Schleiermacher, Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Ludwig Feuerbach.

Ao criticar o spinozismo como um “acosmismo”, ou seja, como uma “negação do mundo”, por supostamente ser estático e excluir a existência das coisas singulares, do indivíduo, do sujeito – estariam afogados no Todo – Hegel exclamou: “Ao começar a filosofar, você precisa primeiro ser spinozista. O espírito deve se banhar no éter da Substância una em que tudo o que se acreditava verdadeiro pereceu”. A frase, em tom irônico, costuma ser interpretada como um elogio.

O certo é que, no sistema de Spinoza, o Todo (Infinito) determina mas não deleta os seus modos finitos (as singularidades), aí incluídos o sujeito, isto é, as pessoas em ação, livres do maniqueísmo do bem ou do mal (relativos e não absolutos), contraditórias, ora egoístas, ora altruístas, movidas pelo desejo (a sua essência), ávidas de conhecimento (sua suprema alegria), buscando ampliar a sua potência de existir (conatus) e a sua liberdade.

Deus aut Natura - Feuerbach, o crítico do hegelianismo que fundamentou o materialismo dos jovens Karl Marx e Friedrich Engels, disse que Spinoza, ao se referir a Deus, na verdade estava falando da Natureza. “O segredo, o verdadeiro sentido da filosofia de Spinoza, é a Natureza”. Com essa observação, Feuerbach interpretou o spinozismo como um sistema filosófico materialista. Baseado nisso, Gueorgui Plekhanov, o fundador do marxismo na Rússia, inspirador de Lênin, escreveu que “Feuerbach é o Spinoza que deixou de chamar a Natureza de Deus depois de passar pela escola de Hegel”.

Na célebre polêmica com Eduard Bernstein, o líder neokantiano do Partido Social-Democrata Alemão, Plekhanov chegou a dizer, para espanto de algumas correntes do bolchevismo, que o materialismo de Marx e Engels, que passaram pela escola de Feuerbach, era “uma espécie de spinozismo (eine Art Spinosismus)”.

Talvez Plekhanov tenha razão, embora não se deva incluir aqui aquele ramo do marxismo que reintroduziu na História a finalidade (“teleologia” em linguagem filosófica) copiada de Hegel, como se o mundo caminhasse, necessariamente, em direção ao Comunismo. Para Spinoza não há finalidade alguma na História ou na Natureza, com o que concordaria mais tarde o naturalista Charles Darwin, também partidário da ideia de que o ser humano não tem predicados de superioridade no seio da Mãe Natureza, isto é, não é um império dentro de outro.

Estética - Uma grande curiosidade histórica, paradoxal mesmo, é que Spinoza, mesmo sem ter formulado, como Kant e Hegel, uma estética – talvez por vislumbrar um potencial de alienação nas artes, devido ao fato de serem filhas da imaginação – parece ser o filósofo que mais encantou os artistas a partir do final do século 17, em vários países. A sua ontologia, interpretada como um panteísmo (Deus em tudo), fascinou os românticos alemães na sua volta à Natureza idealizada. Eu acho que essa leitura alegremente torta do naturalismo spinozano pode ser explicada pela teoria da “angústia da influência” do crítico americano Harold Bloom.

Como já não tenho espaço-tempo para encompridar essa nossa conversa, listo a seguir uma pequena amostra de escritores, poetas e pensadores influenciados pelo nosso filósofo (olhem aí a intimidade!): Novalis, Johann Wolfgang von Goethe, Johann Gottfried von Herder, Friedrich Hölderlin, Erich Auerbach e Heinrich Heine, na Alemanha; George Eliot, Matthew Arnold, Samuel Taylor Coleridge e William Wordsworth, na Inglaterra; Ralph Waldo Emerson e Herman Melville, nos Estados Unidos; Machado de Assis (dedicou-lhe um soneto), Clarice Lispector, Nise da Silveira e Marilena Chauí, no Brasil; Jorge Luis Borges (dedicou-lhes dois sonetos), na Argentina.

Einstein - O físico Albert Einstein é outra figura que se filiou explicitamente ao pensamento do filósofo holandês, em especial ao seu panteísmo determinista. Certa vez, indagado se acreditava em Deus, disse que acreditava no “Deus de Spinoza”. Como Spinoza, Einstein tinha imensas reservas às religiões organizadas, concordando que são “asilos da ignorância”. Em janeiro de 1954, numa carta dirigida ao filósofo alemão Eric Gutkin, Einstein afirmou que “A palavra de Deus não é para mim nada além da expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia uma coleção de lendas veneráveis mas ainda bastante primitivas”. Numa entrevista ao escritor George Sylvester Viereck, afirmou: “Eu sou fascinado pelo panteísmo de Spinoza. E admiro ainda mais as suas contribuições para o pensamento moderno. Spinoza é o maior dos filósofos modernos porque ele é o primeiro que trata a alma e o corpo como uma coisa só e não como duas coisas separadas”.

Sintetizando um importante capítulo do seu pensamento, Spinoza disse ter feito um esforço cuidadoso para não ridicularizar, não lamentar nem desqualificar as ações humanas, por mais extravagantes ou condenáveis que fossem. Seu objetivo foi compreendê-las como naturais (quer dizer, como parte deste mundo e não de algum universo paralelo ou sobrenatural). Com justa razão, dizem que ele é o filósofo da alegria e da liberdade.

Bertrand Russel, na sua monumental História da Filosofia Ocidental, anotou que “Spinoza é o mais nobre e o mais amável dos grandes filósofos”. Acho que só vão discordar do Russel os que acreditam em fake news, nos Joões de Deus, na imunidade miraculosa ao sarampo e na Terra plana.

Como? Vocês acham que eu peguei pesado? Tudo bem, admito que essa última frase é uma provocação. Mas de tipo spinozista, pô!

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