Se você já ouviu falar da teoria do it da Clarice Lispector, vai querer saber da teoria do post-it, ah, vai!
Grudado no mundo pelas palavras

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Não faz três semanas, uma amiga livreira foi avaliar a biblioteca de um professor aposentado recém-falecido na Asa Sul. De mudança para a Noruega, a filha decidiu se desfazer dos bens – móveis, livros, louças, tapetes, relógios, copinhos de cachaça, baralhos, tabuleiros e até bolinhas de gude. Desde criança, o cara tinha mania de colecionar bugigangas.

A biblioteca de três mil volumes impressionou a minha amiga, mas o que mais chamou a atenção foi a etiquetagem de quase todos os objetos na casa, desde o rodapé até o teto.

Parecia uma instalação da Bienal, diz minha amiga. Aquela infinidade de post-its coloridos grudados nas coisas, e cada coisa identificada com a fina caligrafia do professor pelo nome, às vezes por dois: ventilador (ventilador), endoll (plugue), portàtil (laptop), cable (fio elétrico), làmpada, persiana/veneciana, cadira (cadeira), butaca (poltrona), coixí (almofada), armari (armário), gerro (jarro), catifa (tapete), llibre de butxaca (brochura), llibre cartoné (livro de capa dura), maletí (pasta) pinzell (pincel), escombra (vassoura) etc.

Catalão - Será que o falecido tinha alguma “síndrome nominalista”, do tipo que o  portador acha que as coisas só passam a existir depois de serem nomeadas? Nada disso, explicou a filha do professor. Poliglota, ele simplesmente etiquetava tudo para fixar o vocabulário da língua que estudava no momento. Se dedicou ao catalão nos últimos tempos.

Era fã do poeta Joan Brossa (“influenciado pelo João Cabral”, disse a filha), da cantora lírica Monserrat Caballé e dos cantores Josep Carrera, Lluís Llach e Joan Manuel Serrat, e, acreditem ou não, conhecia até a Rosalía, hype da canção pop, cinco prêmios Grammy ano passado.  Em cima de uma mesa, a filha encontrou um exemplar de Mil cretins, um livro de contos de Quim Monzó, referenciado nas doenças, na crise da velhice, na morte, nessas existencialidades. 

E mais, o professor achava que os post-its eram um santo remédio para prevenir o Alzheimer. Com 83 anos, dizia que é preciso exercitar o cérebro como quem pedala uma bicicleta ergométrica (bicicleta estàtica). Ele mesmo cumpria a regra, meia hora todo santo dia.  

Como não tinha muitos amigos e quase já não saía de casa, o professor passou os últimos anos praticamente internado, lendo, ouvindo música, ordenando as coleções e estudando línguas. E, ao que parece, variando a cachola com filosofia.

No final da conversa, a filha do professor disse que o falecido havia desenvolvido uma teoria do post-it, em confronto com a teoria do it de Clarice Lispector.

Para relembrar, diz a pintora-narradora de Água Viva de Clarice que o it compõe a sua própria transcendência, um certo princípio de criação, algo impessoal, puro, com “o pensamento de uma ostra”. “O it vivo é Deus” e “Deus é o mundo. É o que existe”, diz a narradora em Água Viva. O ar é it, mas sem vento. O amor it é uma alegria. Em contrapartida, uma rosa já não é it, “é ela”. Também não são it nem a formiga nem a abelha. “São elas”.

Post-it - Com base nessa delicada ontologia imaginada por Clarice, o professor – sempre segundo o relato da filha para a minha amiga livreira – chegou à conclusão de que nenhum dos objetos que o cercavam eram it, à exceção, talvez, dos que ele catava durante os sonhos e alucinações. Livros, tapetes, lâmpadas, clipes, farinheiras e cigarras são “eles” e “elas”, dizia. Todas essas coisas têm nomes definidos, às vezes mais de um para dar conta de sua complexidade. Daí ser natural pespegar neles um rótulo, e mais ainda um post-it (pós-it em brasileiro), achado feliz para um conceito que engloba a existência e a essência da coisa, juntas e misturadas. 

 Encantado com a teoria do post-it e com todo a história ouvida por minha amiga livreira, lamentei não ter conhecido a curiosa figura. O professor deve ter sido um poço de sabedoria ou, pelo menos, de cultura dita inútil pelos ignorantes, que é a que nos dá alguma alegria nesse vale de lágrimas, ranger de dentes, ossos secos e urubus de tocaia. Bem que a gente podia ter batido uns bons papos sobre o instante-já e o instante-jamais da Clarice, a imanência do Spinoza e o procés d’independència da Catalunha, tudo com alguns dedos de Aquavit no início dos trabalhos.

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