Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –
O jornalista Licínio Tavares, o Pebão, teve uma ideia tão sinistra quanto brilhante para enfrentar o desemprego depois de ler o Piquenique no Gelo, romance de Andrei Kurkov sobre o escritor frustrado Viktor Zolatarev, que passou a escrever obituários de pessoas a serem executadas pela máfia russa, e que tem como companheiro o Misha, um pinguim depressivo. Acho que isso aconteceu em 2001, e parece que foi em Silvânia, interior de Goiás.
Na visita a um amigo em estado precário no hospital, com muito jeito, Licínio perguntou como é que ele gostaria de ser lembrado pela posteridade, tendo em vista – ãhã! – a sua fama de safado, tratante e fofoqueiro. O amigo deu de ombros, conformado tanto faz.
Licínio insistiu. De jeito nenhum! A honra é o nosso principal valor, e eu posso dar um jeito nisso. Explicou o plano. Escreveria um fornido necrológio do amigo, amenizando as suas faltas notórias com insuspeitos gestos de caridade, todos anônimos, evidentemente, mais valiosos aos olhos da comunidade. No final todos concordariam, à maneira dos chineses, que o homem tinha errado 30% (Quem não, que atire a primeira pedra!) contra 70% de acertos. Partiria dessa no lucro.
O doente teve uma tosse medonha depois de achar a ideia sensacional. Não só topou o plano como se adiantou ao Licínio, oferecendo-lhe uma pequena soma para recompensar o trabalho de lustra-crédito.
Com o novo expediente, Licínio começou a pagar as contas atrasadas, mas não pôde seguir adiante por escassez de amigos em estado de descomposição. Foi então que procurou o dono da funerária com a proposta de agregar ao nobre serviço a opção do necrológio, a ser veiculado na rádio e no blog pioneiro da cidade. Um lava-jato do corpo e da alma, por que não?
Como a vaidade não tem limites nem no beleléu, acreditem, a ideia bombou!
Ah, é pura fake news a insinuação de que foi Licínio quem incrementou a seção de obituários da Falha de S. Paulo.
Todo mundo merece ser santo – II
Professora aposentada, católica carismática recém-convertida, Zenóbia visita o irmão Jordão Bruno no Hospital de Base, desenganado, não passa de amanhã. Ele está lúcido, serelepe, contando piadas. Ela, vexada, preocupada com o destino da alma dele, um ateu empedernido.
Bruninho, diz ela, você não quer aceitar a Jesus como Salvador, pelo menos pra me deixar tranquila? Eu vou morrer de desgosto sabendo que você vai pro Inferno. Nobinha, diz ele, fazendo careta, não seja boba, sua egoísta! Você sabe muito bem o que eu acho dessa bobajada.
Bruno, eu andei lendo a tese de um tal David Bentley Hart, um teólogo americano, devoto de São Gregório de Nissa. Ele diz que todo mundo, sem exceção, vai pro céu, mesmo os piores criminosos. Depois de passar por um período de purificação, né! De acordo com essa doutrina, o universalismo, até mesmo você tem salvação, maninho!
Nobinha, Nobinha, isso faz sentido para um Deus de bondade absoluta, mas você acaba de me dar mais um argumento contra. Imagine se eu vou querer conviver no Céu com a Damares, o Bolsonaro e aquele bando de milicianos! Você tá bestando, maninha! Até a Zenóbia riu, antes de um longo silêncio tumular, quebrado por ele.
Nobinha, tem aí um novo estudo que, na minha opinião, reforça a ideia de que é muito difícil julgar o comportamento das pessoas. A equipe do Dr. Thomas Kraynak, da Universidade de Pittsburgh, acaba de juntar mais evidências de que processos inflamatórios causam depressão e várias doenças mentais. Mesmo que existisse, parece que o livre arbítrio seria afetado por uma simples inflamação! Será que o niilismo do Nietzsche não teve origem na leucoencefalopatia dele?
Os dois soltaram uma gargalhada. Mas logo depois Zenóbia contra-atacou, dizendo que o irmão, no fundo, no fundo, pensava parecido com São Gregório e seu discípulo. A conversa continuou nessa toada madrugada adentro.
Deus morreu, Nietzsche morreu, e o coitado do Jordão Bruno não alcançou nem os primeiros raios do Sol furando as janelas do Hospital de Base.