José Carlos Peliano (*) –
O afeto que se encerra em meu peito juvenil, como expressa nosso hino, de fato, encerra também em meu peito já maduro, ou melhor, “enserra” o afeto, mas também o elogio especial por conhecida jornalista pela apreciação de seu consistente trabalho. Cristina Serra em seu recente livro Entrevista (Kotter Editorial, 2020) consegue reunir 12 escritores destacados da literatura mundial em entrevistas por ela realizadas em anos diferentes de tempos passados.
Em meio aos encontros com cada um para revelarem seus métodos e meios de realizações literárias, poéticas ou não, Cristina supera os clichês habituais de perguntas óbvias comumente repetidas por outros colegas de ofício. O caminho por ela trilhado levou-a à leitura preparatória anterior de obras dos entrevistados para conseguir captar pistas e nuances então garimpadas e pouco conhecidas e ao mesmo tempo poder encaminhar indagações pertinentes entre elas, o autor e sua obra.
As entrevistas não são, portanto, nada óbvias ou superficiais. Ao se aproximar do escritor, cativando-o pelo conhecimento e interesse prévio de sua vida e obra, e também com certeza por sua graça pessoal, ela se vê aquinhoada com um clima de intimidade, o qual transborda em conversas descontraídas e muitas vezes em revelações dos entrevistados desconhecidas do público leitor.
Seu livro, por isso mesmo, se torna não só extremamente agradável de ler, mas também adquire uma toada própria que segue tão bem expressa que fica difícil ter de interromper eventualmente a leitura por uma coisa ou outra. É como estar diante de cada um dos entrevistados escutando-os comentarem suas obras com a atenção voltada pela leitura do texto e das asas da imaginação.
Dos 12 entrevistados separo quatro deles, não por serem melhores que os outros, mas por achar que suas mensagens me tocaram mais de perto como escritor que procura transmitir bem as coisas que me tocam o meu redor de vida, percepção e sentimento. De todos eles, no entanto, fica o toque da revelação humana carregada de poderosa carga de simplicidade e saber.
O mestre Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, sai de sua modéstia, timidez e provincianismo e expõe pérolas de sabedoria e conhecimento poéticos obtidos pelo difícil ofício de encantar as palavras. Lá pelas tantas diz que “todo mundo faz poesia hoje. A poesia agora não tem mais nenhuma regra, nenhum princípio. Não tem métrica, não tem rima, não tem ritmo. É só juntar palavras”, p. 21. Segue afirmando que “a pessoa que escreve deve ter um sentimento mais puro de respeito às palavras e de respeito ao que elas representam”, p. 22. Confessa que toda sua poesia é “confessional, são meus problemas, meus dramas, os meus sequestros, os meus protestos, a minha dificuldade de adaptação à vida, todo esse sofrimento”, p. 27. Reconhece, ao fim, que “o melhor elogio para o escritor é a reação do leitor”, p. 29.
O grande Ferreira Gullar vem em seguida com seus cabelos prateados compondo e iluminando seu rosto marcante. Disse que sua escrita não tinha lugar nem hora, “escrevo em tudo quanto é canto. Tenho mania de guardar papéis no bolso e já escrevi muita poesia em talão de cheque, recibo, nota de compra”, p. 36. Segue, “se eu anoto, é porque já começou o processo de fazer, e aí eu não vou interromper”, p. 37.
Prossegue, “eu escrevo muito pouco. Basta dizer que a antologia de vários poetas é maior que minhas obras completas”, pois “produzir por produzir, não me interessa, inclusive porque eu acho que a maioria dos poetas escreve demais”, idem. Complementa e se pergunta por que escreve ao que responde que escrever “só tem um sentido: é mudar as coisas. Tem que mudar alguma coisa. Não pode ser que eu escreva um poema e tudo continue igual”, p. 43.
O artesão das palavras e dos versos João Cabral de Melo Neto traz na bagagem Morte e Vida Severina e mais homenagens e prêmios. Afirma que, quando pequeno, “tinha uma grande curiosidade intelectual, nunca fui um improvisador, nunca acreditei em inspiração nem em bossa”, p. 49. Uma das razões, acredito, talvez tenha sido sua vivência na roça como revela mais adiante quando os trabalhadores do engenho que não sabiam ler iam às feiras e traziam literatura de cordel, e aí “eu me sentava numa roda de carro de boi, eles ficavam em minha volta e eu, que era muito pequeno – devia ter uns oito, nove anos – lia para eles”, idem. Prossegue, “em matéria de criação eu acredito mais no trabalho do que na espontaneidade. Eu não creio que espontaneidade seja critério de nada”, p. 51. Arremata que, para ele, “cada poema é o resultado de muitos e muitos dias de trabalho, que podem ser contínuos e podem durar anos”, p. 52, e adiciona “escrever me dá muito trabalho, é penoso, dá muita angústia”, p. 57.
Por fim, chego ao final da escolha dos entrevistados. Vem aí a poderosa Rachel de Queiroz, a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, embora se expresse a si mesma sempre com modéstia. Destaca que, no caso de sua literatura, “a preocupação é a de fugir da ênfase, fugir do excesso, da adjetivação, do colorido, do pitoresco”, p.139/140. Quando tinha apenas 20 anos publicou seu primeiro romance O Quinze, onde “há cenas do campo de concentração de retirantes que eu tirei da memória. Eu me lembro do arame, me lembro das famílias acampadas sob os cajueiros, me lembro dos caboclos conhecidos de fazendas vizinhas. Nós tínhamos orgulho de caboclo algum ter saído retirante das fazendas de minha avó, meu pai, meus tios”, p. 140. Confessa “minha tentativa no O Quinze, que foi uma tentativa juvenil, deu depois uma obra-prima com o mesmo tema, que foi Vidas Secas, de Graciliano. Eu mi vi realizada quando Graciliano publicou Vidas Secas, p. 141. Comenta, ao final sobre a necessidade imperativa do talento para a escrita, que “toda obra de arte há de haver um talento específico. Você pode ter as técnicas mais sofisticadas, mais astuciosas, mais hábeis, mas se não há aquela matéria-prima que é o talento, nada feito. Por isso é que eu não me considero uma grande romancista”, p.144.
O livro Entrevista prossegue em cada página sem deixar de encher os olhos com informações, novidades, confissões e deleites. Cristina Serra soube reunir ótimas peças que vai da poesia, ao romance, à música, sim há Antônio Carlos Jobim em depoimento especial, além de Isabel Allende, Jorge Amado, Mário Quintana, Fernando Sabino, Darcy Ribeiro, Antonio Callado e João Ubaldo Ribeiro. Mais ainda, ela dá o tom de cada autor pela introdução bem apresentada de todos eles. De fato, é um livro para não deixar de ler, reler e tê-lo perto para renovação de lembranças de alguns dos consagrados escritores de nosso tempo. Bravo!
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.