"A vida é de quem se atreve a viver".


Jorge Luis Borges: “A arte é uma parte essencial, sobretudo a arte alheia, pois o que a gente mesmo escreve não passa de um reflexo, mais ou menos modificado, do que a gente leu”.
O passado na luz do presente

José Carlos Peliano (*) –

Não resisti. Tomado por uma satisfação imensa ao ter estado com dois dos maiores escritores latino-americanos por uns dias, não resisti de destilar minha leitura do livro Borges na luz de Borges, de Thiago de Mello, Editora Pontes, Campinas, 1992. Apenas 96 páginas, que equivalem a muitas informações, confissões e histórias, em conversas poéticas e filosóficas. Um adorável passeio pelos caminhos das entrevistas feitas pelo grande poeta brasileiro com o seu companheiro de letras argentino de semelhante estatura literária Jorge Luís Borges.

Na realidade uma releitura porque já o havia lido em 1993, um ano após sua publicação. O livro foi-me dado pelo próprio autor, amigo de dimensão amazônica, um inestimável presente com carinhosa e marcante dedicatória: “Para o José Carlos, poeta que me faz bem, pessoa boa, com o respeito e a ternura do Thiago, 1993”.

É desses livros que a releitura nunca é demais porque nos faz refletir de novo, ter outras interpretações, se encantar mais uma vez e sentir que a literatura latino-americana é prodigiosa e rica de autores, contos, romances e biografias. E conhecimentos pessoais que muitas vezes nos escapam não fossem entrevistas e testemunhos como esses.

O poeta e escritor argentino Jorge Luis Borges, então, com 80 anos, já cego, e Thiago com 55, no primeiro encontro e três anos após no segundo, conseguiram duas gravações em registros memoráveis, repletos de momentos de impressões e afirmações iluminadas. O que era pouco comum em se tratando de Borges, principalmente porque ele nunca teria sido muito disposto a entrevistas.

Transparece pela leitura que a boa receptividade de Borges a Thiago deveu-se, pelo menos para mim, ao fato de o brasileiro ter sido apresentado a ele por um jornalista também argentino conhecido de Borges, à desenvoltura do poeta brasileiro em conduzir as perguntas como se fizesse versos e por fim ao seu próprio conhecimento anterior da vasta obra de Borges para a realização da entrevista - até 1985, um ano antes de sua morte em 14 de junho de 1986, o argentino havia escrito 13 livros de poemas, 4 de verso e prosa, 10 de ficção, 15 ensaios literários e filosóficos e 16 obras em parceria com outros escritores.

A grandeza literária de Borges, assim considerada por boa parte de críticos e demais literatos e referendada pela quantidade de prêmios, homenagens e condecorações que recebeu em vida, fica maior ao saber de sua postura simples, discreta e modesta. Chega ao ponto de confidenciar a Thiago, “não gosto do que escrevo” (p. 23), enquanto dá mais valor a quem o traduz ao afirmar “todas as traduções sempre melhoram meus textos. Eu sou inventado pelos meus tradutores” (p.62).

O que poderia estar por trás dessa aparente contradição e transparente humildade demonstrada por Borges, Thiago consegue dele obter e transcrever à página 73 quando o argentino considera que “a arte é uma parte essencial, sobretudo a arte alheia, pois o que a gente mesmo escreve não passa de um reflexo, mais ou menos modificado, do que a gente leu”.  Arremata, “o que convém é saber tratar certas metáforas eternas. Inventar mesmo, me parece muito difícil” (p. 74).

Aprofunda Borges um pouco mais e considera “que a humanidade sempre está contando as mesmas histórias, descobrindo as mesmas afinidades, com ligeiras diferenças – essas diferenças é que são preciosas” (destaques meus) ... “toda poesia corresponde a uma experiência compartida, o poeta depende do leitor”. Decorre daí que “toda palavra pressupõe uma experiência compartida” (p.74).

Para Borges a poesia “é o fato estético. Não é um poema, tampouco é tal ou qual verso. É o fato poético que se produz quando o poeta escreve, quando o leitor o lê, e sempre se produz de um modo ligeiramente diferente. A poesia é um fato misterioso, inexplicável, jamais incompreensível” (p.75).

A sabedoria de Borges tão bem captada pelos dois momentos da entrevista de Thiago, para mim, se explica pelo seu reconhecimento de que ninguém é maior ou menor que ninguém, somos todos iguais em natureza, mas diferentes em sua expressão em cada um de nós. Para que cada expressão da natureza em nós se expresse, portanto, a vida tece relações humanas, sociais, políticas e econômicas, que nos identificam habilidades, estabelecem especificidades e nos garantem subsistência enquanto pessoas, seres sociais, sujeitos de convivência e cooperadores no trabalho.

Dessa forma, a grande sacada de Borges, ao mesmo tempo sua postura humilde, receptiva e generosa diante do mundo onde viveu, foi a de se ver a si como apenas um ser humano com qualidades e defeitos, cuja expressão se dava como estudioso, escritor e poeta. O fato de não achar que escrevia bem vem da percepção que as novidades não vinham dele, porque se conhecia bem, mas do outro que tinha outra forma de expressar sua individualidade.

Mais ainda, que qualquer forma de trabalho, e adiciono ciência e tecnologia, resulta da interação social entre diversos seres humanos, trabalhadores de todos os tipos e de suas aplicações práticas de seus conhecimentos. Nada se inventa por si, somente chega-se à invenção por meio do saber acumulado por outros predecessores, mesmo que o resultado seja radicalmente oposto aos anteriores. Como Einstein com sua Lei Geral da Relatividade. Ele só pode chegar à revolução da física passando e repassando desde Newton as formulações teóricas da matéria e da energia até seu clique (eureca) final. Esta concepção compartida do conhecimento de Borges me parece ter sido sua verdadeira grandeza como intelectual e ser humano. Bravo!

Essa espécie de tessitura social entendida por Borges esbarrava com sua visão do mundo em que viveu. Segundo ele dois males existiam na época, “um, o nacionalismo. O outro as diferenças sociais”. Citou Bernard Shaw, “o capitalismo condena os homens a dois males. Os pobres são condenados à miséria. Os ricos, ao tédio e ao ócio”. Conclui, “é um mundo muito estreito este em que vivemos”, (p.84).

Considerava ser da classe média e como tal vivia no labirinto social entre ricos e pobres, aliás labirinto era uma de suas obsessões pessoais expressas em sua literatura, assim como o espelho, símbolo de enigma, e o tigre, símbolo de ferocidade e elegância. Talvez essas três figuras tenham em conjunto a exposição de sua própria vida no mundo estreito do capitalismo, onde no labirinto procurava desvendar seu enigma e, ao mesmo tempo, encontrar seu tigre na poesia ou no espelho. A cegueira trouxe-o para longe do espelho e da visão do tigre, deixando-lhe o labirinto de ser e viver.

O passado na luz do presente, Borges demonstrou ter aprendido a viver no seu labirinto. Povoou-se de recordações e imaginação. Até que Thiago traduz: “os autores que mais o ajudaram ao entendimento da vida são criaturas de sua fantasia ... tudo nasceu da pluma de sua imaginação. Borges não existe. Desconfio que ele não passa de uma invenção dele próprio”.


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(*) José Carlos Peliano é poeta, escritor e economista.

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