José Carlos Peliano (*) –
O descolamento da realidade é uma doença antiga da sociedade moderna tratada com medicamentos virtuais que não curam e envolvem mais e mais os seres humanos na teia enganosa da alienação. O pior é que hoje chega-se ao ponto de crer em mitos sem pés nem cabeça que simbolizam um furor visceral sem precedentes a destruir a capacidade de se viver em sociedade com respeito, cooperação e dignidade.
Desde que a agricultura cede lugar às primitivas aglomerações com face urbana que se dá uma separação entre o ser humano e a natureza, entendida esta como o habitat comum de bichos, plantas, águas, terra, mulheres e homens. Estes tinham de viver e se reproduzir contando com a colaboração do solo, seus rebentos e todos os não-humanos que por ele se moviam. Havia uma comunhão rica e primitiva entre eles quando uns se valiam dos outros para levar a vida em frente.
Essa inter-relação a mais das vezes saudável e produtiva era a garantia da sobrevivência dos povos primitivos e seu meio-ambiente. O que tinha de mais duradouro, básico e fundamental nessas etapas da caminhada humana era que o ser humano tratava a terra como amiga e companheira e essa, por sua vez, o percebia como mais uma espécie viva que caminhava como os amigos bichos. A diferença aí entre o ser humano e o bicho era que o primeiro ajudava a reproduzir a natureza a sua maneira, ao passo que nem todo bicho procedia assim, muito embora ambos não eram destruidores. Consumiam para sobreviver e se manter sempre, não para se apropriar de vez, estocar e devastar.
A chegada da vida urbana distancia o ser humano desse convívio pacífico e frutífero. As raízes não estão mais no solo variado das condições naturais pois voltam-se para o solo batido, empedrado e bem mais tarde asfaltado. O ser humano tira a terra fresca e germinada do caminho, tapando-a definitivamente por baixo das coberturas com pedras ou piche e por onde iriam passar ele mesmo, os bichos domesticados e os veículos.
Esse cenário simbólico em todos os cantos do mundo fez com que a parte urbana da humanidade perdesse não só a noção da importância do papel da natureza na evolução humana, como também passasse a ver sua contribuição na sociedade somente nos produtos vindos dela para consumo. Este, ao simbolizar o ato final de transformação em energia no organismo dos rebentos da agricultura, encerra para os urbanos o que ela representa para a sobrevivência e reprodução da vida. Nada mais.
Segue daí que o consumo revela dessa forma a transformação de todo o processo de produção entre natureza e ser humano apenas no ato de comer, matar a fome, satisfazer ao paladar. A coisa final da produção da agricultura, uma couve, por exemplo, é vista apenas como uma “coisa” usada pelos urbanos para sua preferência nas refeições diárias. No limite da alienação urbana a agricultura é uma couve e uma couve é o que vem da produção agrícola.
Esse modo de ver e entender as coisas no mundo urbano, cada vez mais presente na contemporaneidade, se estende para os demais fetiches produtivos. Vê-se as coisas por elas mesmas, reifica-se cada uma delas pelo que representam em si, nada além. Em outras palavras, não se percebe que a coisa em si não existe por si mesma, ela resulta de um emaranhado de relações anteriores entre trabalhadores que possibilitaram chegar àquela coisa final produzida. Fica-se no particular e não se dá conta do todo.
Um aparelho de telefonia celular é visto como uma coisa que fotografa, comuta mensagens, permite falar com outra pessoa, guarda informações e transmite textos para as redes sociais, entre outras alternativas. Esse conjunto de atividades reifica-se com a palavra mágica, tecnologia. De última geração e de vantagens insuperáveis em relação às concorrentes, faz o usuário ser moderno, atuante, pródigo, importante, enfim quem a detém é o máximo, um proprietário de classe e moderno.
Essa redução, de um lado, da natureza e, de outro, da produção de um objeto tecnológico, uma coisa qualquer, estimula e induz mais e mais o consumo crescente. Na produção agrícola mecanizada, o “Agro é pop”, investe-se mais e mais na veiculação da propaganda de maior e mais rápida produção para os consumidores, com sementes selecionadas e tratadas para render ótimos produtos. Junto vêm, entre outras, imagens televisivas de tratores e equipamentos de todos os tipos limpando, revolvendo e plantando o solo e aviões aspergindo líquidos químicos para eliminar pragas e insetos.
Em ambos os casos citados, o telefone celular e a produção Agro, o produto final é uma festa de características particulares que são oferecidas aos compradores para saciar seus consumos pessoais. O produto representa mais que seu processo de produção, conta mais o produto e não o processo. Nesses termos, o processo é totalmente ignorado pela imagem “sem igual” do produto.
A vida urbana moderna é totalmente embrulhada em fetiche. O invólucro vale mais que o conteúdo. O que propiciam os novos produtos, sejam eles quais forem, com suas “qualidades” bem veiculadas faz com que o cidadão compre a boa nova que chega ao mercado sem maiores preocupações. Vale o que e como é vendido, não o que é possível, útil ou preciso, sem questionamentos.
O modo urbano de viver condiciona e leva a isso. Somente os grandes grupos e empresas têm mais acesso à TV, rádio, jornais, revistas e demais mídias. Seus produtos são veiculados diariamente, várias vezes ao dia. Em muitos casos, a propaganda maquiada ou enganosa disputa hoje com a fake news, assim o que não se mostra e o que se engana toma lugar de uma informação limpa e justa. Compra-se, então, qualquer coisa no mercado de acordo com algumas preferências pessoais do consumidor.
O invólucro das coisas vem recheado de qualidades intangíveis como conforto, praticidade, bom gosto, confiança, aparência e modernidade. O consumidor é levado a adquirir coisas mais pelas qualidades apregoadas nas propagandas do que seu real interesse, necessidade e oportunidade.
Vale aí a coisa, o produto, não o resto. No saco desse resto vai, por exemplo, a poluição das praias, dos rios, do ar, do som e do excesso de informação; a queima e devastação das matas, áreas de conservação e da floresta amazônica; o combate aos povos da floresta, quilombolas e indígenas, por ocuparem desde tempos imemoriais lugares para a exploração agrícola empresarial mecanizada e a pecuária extensiva de hoje; a exploração econômica de depósitos minerais de lítio para a produção de baterias de celulares e computadores com seus íons.
O véu que encobre a sociedade de ver e entender o que se passa na superfície da produção social é responsável por mantê-la alienada e sem noção do devastado futuro que lhe espera em contraste com as imagens maravilhosas mostradas pelo sistema de propaganda. Em decorrência disso, a obtenção e acumulação sem limites de lucros provoca o aumento da desigualdade social, a pobreza, a miséria, a segregação de grupos sociais e o racismo. Há tempo ainda de abrir os olhos e ver que a terra não é plana!
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.