JC Peliano (*) –
As músicas conseguem tirar a alma, o coração e o espírito de seus aposentos e dançar com eles sonhos e prazeres sem fim. Poemas sem palavras, elas exprimem mais que versos e estrofes, entoam lembranças, sentimentos, lugares, idades, amores, amigos, brincadeiras, eternidade. As músicas devem nascer de onde os poemas pedem passagem para entrar na avenida.
Aos compositores, músicos, maestros, bandas, orquestras e coros devo uma boa parte de minha vida. Com eles todos e a cada vez a bordo das canções estive por mares nunca dantes navegados, ou navegados vezes e vezes sem conta, e por céus de todas as cores de norte a sul, leste e oeste, e aterrisagens encantadas, atrás de cordéis e cordéis de recordações e imaginações que quis e pude resgatar lá de onde fadas, duendes, magos e paraísos guardam o mistério da vida.
Bandos de violinos quando voam nas sinfonias ao lado de teclas enamoradas dos dedos de pianistas em especial me levam para longe de mim onde tempo e espaço perdem suas bordas e extensões e chegam de asas abertas a um universo sem começo nem fim. Nem endereço físico ou eletrônico. Nunca perguntei se isso também se passa com alguém. Apenas vi algumas vezes olhos cerrados saboreando sons melodiosos derramando de cachoeiras invisíveis. É possível que essas pessoas estivessem em mares e voos semelhantes aos meus.
O dom de levar aos encantos sem tamanho ornados dentro da magia musical tem para mim um toque especial nas chamadas músicas clássicas ou próximas. Claro que uma composição de Jobim, Chico Buarque, Milton Nascimento, Pixinguinha, Ataulfo Alves e outros de igual porte, vale mais que o ingresso. O auditório que carrego comigo está repleto de poltronas onde sempre me encontro sentado em todas elas com meus ouvidos ligados e extasiados de alumbramento e satisfação.
Mas são diferentes as emoções. Nos bons clássicos chego ao continente, na boa música popular vou ao arquipélago. Ao continente cheguei ainda menino pelas mãos de meu pai em terras de Tchaikovsky. Aos domingos de descanso do trabalho eu ouvia suas melodias nos antigos LPs, discos de vinil, guardados com cuidado por meu pai. E já de calças curtas eu começava a ter viagens longas na imaginação ainda tomando forma, jeito e adornos. Mais tarde outros clássicos vieram aos poucos se incorporando ao meu gosto musical. Um Beethoven, Albinoni, Bach, Mozart, Chopin, Villa Lobos, Ravel, e outros tantos, me faziam o bem chegar e permanecer continuado.
Apenas um apreciador, um aprendiz de ter ouvidos afinados e bem-comportados musicalmente, me emociona entre as clássicas em particular as melodias que trazem passagens românticas, não piegas ou de água com açúcar. Nessas ocasiões, passo a ser mais um componente da orquestra costurando o som no coroamento da sinfonia aos píncaros da celebração. Entre os outros tantos citados no parágrafo anterior, seleciono com prazer o russo Rachmaninov cujas melodias me encantam particularmente. Seu concerto no. 2 em especial me soa comovente, entoado de acordes encantados. Foi numa visita a Leningrado, hoje São Petersburgo, que conheci mais de perto sua obra.
Pois bem, foi neste sábado 18 de julho de 2020 que amanheci ouvindo ainda debaixo das cobertas Once upon a time in the West de Ennio Morricone com o solista Vásáry André. A melodia e o solista acertaram os ponteiros e marcaram uns bons minutos de maravilhosa conjugação de bom gosto, enlevo e satisfação musical. Morricone não é um clássico, mas faz parte do primeiro time dos compositores modernos. Para alguns críticos e especialistas ele é considerado o melhor compositor para filmes dos últimos tempos. Dono de vasto repertório para a filmografia que compôs, deixou este ano um legado de imensa grandeza lírica aos 91 anos.
Algumas músicas suas, como essa, conseguem me emocionar. Com elas acho que não conseguiria ser mais um componente da orquestra, não saberia se tocaria e, caso tocasse, não sei se chegaria a tocar sem emoção.
Outra música dele de igual intensidade, mas de toque singelo e cativante é Malena, feita para um filme de igual nome e impacto, estrelado pela belíssima Monica Bellucci. Outra sua feita para o filme Cinema Paradiso é de uma sensibilidade e beleza ímpares assim como a história em tela.
Este texto emocionado que aqui escrevo é resultado da parada obrigatória desses meses de pandemia. Em casa, afora os afazeres domésticos que me cabe na divisão de trabalho familiar, só me resta a criatividade para dar vazão a energia acumulada. Revisitar Ennio Morricone foi uma bênção.
Amigo de outras horas de salas de cinema e áudios sempre me trouxe asas para voar em suas composições melódicas. Em cada uma dessas ocasiões fui ator, componente de orquestra, um, dois e muitos. Todos eles vêm ainda comigo pela vida afora. Levava para a cama a cada vez as histórias assim por mim interpretadas para serem sonhadas e usufruídas no rolo de imagens projetadas na tela de meu universo onírico.
E me fizeram um bem incomensurável essas histórias e imagens. Esse o valor sem medida, tempo e idade dos artistas em geral, o poder de fazer da arte a arte que nos faz bem, que nos cria e recria em sonhos e emoções enquanto vida houver. Elevar aos céus os balões coloridos da cultura para que a arte se torne estrelas que iluminem a cada um e a todos nós e mostrem o caminho da construção de um mundo renovado de esperança e bem-aventurança. Sem discriminação de qualquer espécie, desigualdade, despotismo e injustiça. Há que abrir os braços como o Cristo Redentor no Rio de Janeiro para receber e abraçar a todos os que comungam com a paz, harmonia e amor incondicional.
Sigo assim comigo, com os atores que fui, os compositores que pude ser, e feliz sigo muito bem acompanhado pelas atrizes com quem contracenei, Ingrid Bergman, Monica Bellucci, Audrey Hepburn, Kim Novak, Jane Fonda, Fernanda Montenegro, entre outras. São todos eles que trazem de não sei onde os poemas, novelas, contos e textos que escrevo e que me ajudam a ver melhor e de olhos clareados os caminhos por onde ando. E pelas lembranças bem guardadas em meus sentimentos e em cada emoção sem lugar, hora ou idade. Aliás, nessas horas especiais não tenho idade, o tempo para e o espaço é só meu e de quem quero estar perto.
Paro para descansar um pouco
vejo que vem comigo não atrás
ou ao meu lado, mas dentro
uma vida inteira até aqui
por isso ando mais devagar
sou um, dois, sou muitos
meu mundo é maior que minha vida
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(*) José Carlos Peliano, economista, poeta, escritor.