José Carlos Peliano (*) –
É dessas coisas que acontecem na vida da gente e nos surpreendem, não por elas mesmas, mas pelo jeito que aparecem e como se desdobram. É como o inusitado e o imprevisível de repente ao tomarem conta de nossos momentos e por ali ficarem a nos chamar a atenção. Como uma vaca atravessar a estrada na frente de um ônibus, um avião perder a sustentação no ar por segundos, vir à memória um acontecimento, um encontro, um desencontro, uma recordação.
Quando hoje, segundo dia de julho, vi um vídeo com a presença de Eduardo Moreira, o pastor Henrique Vieira, Frei David e o padre Júlio Lancelotti, logo pela manhã, e ter me tocado fundo a fala do padre, mais tarde ter lido o pequeno relato da vida de Sandra Mara Herzer em sua queda para o alto, me veio em seguida à lembrança a presença de Suplicy na banca de minha defesa de tese de doutorado em Campinas em 1992.
Minha mochila de memórias vai se enchendo de itens especiais e particulares há tempos em minhas caminhadas pelo mundo afora, minhas trilhas nas ruas da vida, meus acampamentos nas casas de amigos, praças, praias, bares e restaurantes, minhas escaladas por andares de edifícios de apartamentos ou comerciais, e meus devaneios em paisagens e mirantes de vales, montanhas, vilas e fiordes.
Uma surpresa sem tamanho foi ter sabido do pequeno relato da vida de Sandra Mara através de uma mensagem no Facebook de Deise Cristina. Um resumo do relato cabe aqui. Sandra era interna do Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) em 1979 e teve também a presença do inusitado e do imprevisível ao conhecer em determinado dia o então deputado estadual Eduardo Suplicy em seu primeiro mandato pelo MDB.
Sandra perdeu o pai assassinado e a mãe por ter pego uma doença venérea, após se prostituir para sustentar a família com a morte do pai. Foi ela morar com a avó e depois com uma tia, quando a avó morreu. O tio tentou manter relações sexuais com ela, mas não conseguiu porque ela reagiu e lutou com ele. Foi levada à Febem em seguida e ficou por lá desde os 14 anos. Sua estadia na fundação se deveu a não ter para onde ir já que não tinha cometido transgressão alguma.
O encontro com Suplicy se deu aos seus 17 anos, entretanto não mais como Sandra, mas como Anderson, um garoto transexual. A presidenta do Movimento de Defesa do Menor diz então ao deputado que o garoto só poderia sair dali se alguém se responsabilizasse por ele. Suplicy decide se responsabilizar pela soltura e oferece um cargo em seu gabinete na Assembleia Legislativa de São Paulo. Sandra se sentia como um homem, vestia-se como tal e assinava seus poemas como Anderson Herzer.
Uma manhã soube-se de sua morte por ter se atirado de um viaduto da 23 de Maio, tendo mantido no bolso um papel com o nome e o telefone do deputado. O livro sobre a vida de Anderson, escrito por ele, foi publicado pela Vozes sob o título A queda para o alto. O filme Vera contando sua história foi lançado em 1986, tendo a atriz que interpreta seu papel, Ana Beatriz Nogueira, ganho o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim de 1987.
Anderson deixa uma carta para Suplicy datada de 5 de setembro de 1980. Dois trechos: “Sabe homem; nem sei o que seria do universo se todos os homens merecessem ser chamados de homem” e “poucas vezes vi seus filhos, mas muitas vezes pensei sozinho, o quanto eles devem andar de cabeça erguida, com o peito cheio de orgulho, por notarem o pai formidável que têm”. Termina a carta “de quem sempre te lembrará em cada lágrima ou sorriso de vitória”.
A história de Sandra-Anderson me surpreendeu, como o inusitado e o imprevisível, não só por desconhecê-la, mas também por vir a saber desse lado solidário, humano, desprendido e magnânimo de Suplicy. Conhecia-o do Congresso Nacional quando era senador. Eu era assessor da bancada federal do PT na Câmara. Sabia sim que era um parlamentar gentil, educado, generoso, confiável, perseverante e produtivo. A impressão era generalizada, não só minha, mas de assessores e parlamentares, mesmo de outros partidos.
Chamava a atenção sua perseverança na defesa dos mais pobres e desassistidos, tanto que empunha desde sempre a bandeira do projeto de renda mínima, o qual com variantes se torna mais tarde o Bolsa Família. Mas ele não desiste de sua ideia original por acha-la fundamental ao país notadamente pela sua marcada desigualdade de renda. Com sua ideia, pobres e miseráveis teriam um mínimo com que se sustentar e viver.
E foi exatamente por conta desse seu esforço pela aprovação de sua ideia da renda mínima que o convidei para participar da banca de minha defesa de tese de doutorado Distribuição de renda e mobilidade social no Brasil: a ordem e o progresso desiguais, na Unicamp. Com ele estavam o falecido deputado federal Walter Barelli, José Graziano da Silva, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e meu orientador Luciano Coutinho, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A participação de Suplicy foi igualmente surpreendente e inusitada, embora fosse pertinente e oportuna. Passava na TV à época a minissérie Hilda Furacão, sobre personagem da vida mineira, vinda de família abastada de Recife, que se torna prostituta, por volta dos anos cinquenta. A estória foi romanceada por Roberto Drummond posteriormente. No resumo por ele feito, que deve ter tomado bem uns vinte minutos, ele se atém às questões da discriminação social e de gênero, do machismo, da liberdade de costumes e da hipocrisia urbana – o tratamento e visão da prostituição como sendo denunciada, mas tolerada. Por trás de todas essas questões quis ele ressaltar o peso da desigualdade de oportunidades, escolhas e vida entre mulheres e homens. Pois Suplicy me interroga ao final do resumo da estória com apenas uma pergunta.
Depois de aprovada a tese pela banca com louvor, voltei de Campinas a São Paulo dividindo um taxi com nada menos que Suplicy. Conversamos sobre vários assuntos tendo ele demonstrado seu amplo conhecimento e interesse pela vida histórica, econômica e social do nosso país. Além de sua ferrenha e pacífica disposição em continuar na luta pela melhoria de trabalho, renda e vida do povo mais pobre.
E Suplicy inclusive já lutou box quando jovem, daí sua envergadura e compleição física avantajada. De fato, um lutador das causas humanas e dos pobres e desassistidos. Suplicy com seu jeito manso e ponderado de um lado e o padre Júlio Lancelotti com seu jeito igualmente calmo e tranquilo de outro, são ambos sacerdotes da dignidade humana, da solidariedade, da compaixão, da fraternidade, ambos guerreiros por uma vida social justa e uma vida econômica equânime. Símbolos, como Dons Quixotes, perdedores das grandes causas, mas vencedores das pequenas causas, do corpo a corpo, do olho no olho, da mão na mão, braços dados com a irmandade de todos os filhos da Terra. Dois furacões em gestação social.
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(*) José Carlos Peliano é economista, poeta e escritor