José Carlos Peliano (*) –
O ano era 1979, se não me falha a memória, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Compareci para acompanhar o 1º Congresso de Psicologia Transpessoal da América Latina, organizado, entre outros, pelo falecido Pierre Weill, fundador da Universidade da Paz, com sede em Brasília.
Convidado pelo amigo Agnaldo de Campos Neto, psicólogo falecido prematuramente, assisti várias palestras interessantes, inovadoras e provocativas sobre a maneira de pensar e sentir a vida interior e ao redor. Naquela época chegava ao país os conhecimentos da nova psicologia que buscava incorporar de forma mais efetiva o lado espiritual ao psicológico da pessoa.
Não sou do ramo, mas sempre fui interessado tanto que minha amiga Nise da Silveira chegou a me sugerir em determinado momento largar a economia pelo menos parcialmente para acompanha-la no mundo da psicologia analítica de Jung no Rio de Janeiro na Casa das Palmeiras e no Museu de Imagens do Inconsciente para aprender a técnica que ela achava eu ter jeito e sensibilidade para praticar. Mariana Alvim outra psicóloga amiga radicada em Brasília naqueles anos igualmente me recebia para conversarmos sobre psicologia e espiritualidade. Memoráveis e inesquecíveis encontros.
No Congresso de BH ouvi uma palestra de Ronald Laing um dos mais brilhantes psiquiatras ingleses da época membro do movimento da anti-psiquiatria junto, entre outros, com David Cooper e Michel Foucault. De todas as que presenciei, a de Laing foi a mais frequentada e aplaudida. Além de ser um brilhante apresentador e facilitador na condução da plateia, Laing expunha com carisma, conhecimento e perspicácia as raízes, razões e resultados de seu trabalho participativo, onde o psiquiatra vivencia as neuroses junto com o paciente para entendê-las como tais.
Deixara meu trabalho de economista em Brasília para ir ao Congresso a fim de me dar uma pausa para aliviar a cabeça dos problemas do dia a dia e conhecer de perto o que trazia a Psicologia Transpessoal. Coincidentemente, ou como diria Jung, uma “sincronicidade”, Laing lá pelas tantas abordando como lidar com as neuroses estando no meio delas fala exatamente da necessidade de se dar uma “pausa” na condução de qualquer tratamento. Uma pausa para pensar e avaliar o que aconteceu até então, o que viria a seguir e de que jeito continuar.
Ele, então, afirma que em toda canção “o que importa não são as notas musicais, mas os intervalos entre elas”. Os intervalos ao mesmo tempo em que pausam as notas eles indicam os trechos musicais a seguir e sustentam as notas na ciranda da melodia. Sem os intervalos, sem as pausas, as notas formariam um amontoado de sons sem conexão melodiosa alguma. Uma cacofonia.
Até então não tinha me dado conta da importância das pausas no quotidiano em qualquer atividade. As entendia e usufruía simplesmente como breves descansos para retomar a atividade daí a um tempo. Na realidade, nessa maneira de pensar, eu mantinha a atividade na cabeça e acabava que, de fato, não saia dela, mantendo-a sempre comigo, pois fazia a pausa para recobrar a disposição e voltar novamente ao que fazia antes. Na maioria das vezes, portanto, as pausas assim entendidas e usadas aumentavam em mim a tensão e o cansaço.
Decorre daí que toda a pausa deve ser aproveitada da maneira que cada um quiser sem se preocupar com seu término, continuar pensando no que fazia ou ainda no que vai fazer ou se ao final tiver que retomar o que fazia. A pausa deve ser encarada como o bom sono quando se recompõe a força e a energia ao tempo em que se esvazia do que vinha por dentro antes para se encher de inspiração, tranquilidade e clareza.
A pausa provocada pela pandemia do coronavírus nessa perspectiva é a oportunidade que cada um de nós tem de repensar o que até então viemos fazendo e o que temos de modificar para a retomada. E repor a saúde física e mental para recomeçar e reconstruir um novo rumo, um novo caminho, ou uma nova melodia de acordo com Laing.
Enquanto muitos de nós estiver se lamuriando e se martirizando com pensamentos de falta de alguém, ou alguéns, alguma coisa, ou coisas, de ter caído uma punição sobre as cabeças, de que nunca deveria ter isso acontecido, e que tais, a vida vai se tornar insuportável e a pausa forçada da pandemia só vai servir para ir ser procurado um terapeuta ou um medicamento para acalmar a mente.
É claro que a pausa entre uma nota musical e outra vai servir para definir qual a sequência e esta depende, claro, das notas anteriores. O mesmo deve ser usado nessa pausa da pandemia. Essa, objetivamente, serve para repensar o que veio sendo feito, se vale a pena continuar assim, o que deve ser feito para mudar ou de ação ou de rumo. O mais importante é relaxar porque a volta a sair de casa sem máscara não depende só de nós individualmente, mas de todo mundo.
Daí a construção coletiva de um espírito de congraçamento que nos leve a estarmos bem conosco e com cada um dos demais, sem ódio, sem implicância, sem disputa, sem concorrência. Construção de uma sociedade limpa de preconceitos, de discriminação de raça, cor, sexo, opção sexual, religião e de tudo o mais que não trate o próximo como companheiro de vida nessa vida que nos foi dada viver.
Afinal, a pausa da pandemia é oportuna e necessária para nos reconstruir na busca de fazer de nossa vida uma comunidade com todos os outros que nos acompanhem para revigorar a natureza que nos rodeia, os bichos, as plantas, as árvores, as florestas, os rios, os mares, os oceanos, as geleiras, os peixes e nós mesmos. Fazer da nossa Terra a verdadeira mãe, o organismo vivo que nos abriga, sustenta, renova e nos promete o futuro desde que cada um de nós faça sua parte. E bem feita.
Que não deixemos mais eleger indivíduos sem nenhuma qualidade para governar um país. Que criemos condições objetivas de, como povo, possamos corrigir o andamento deturpado das coisas impedindo nós mesmos de continuar em suas funções os falsos dirigentes e governantes. Uma revolução silenciosa, mas objetiva, positiva, progressista, sem radicalismo político ou religioso, sem violência. Nos fazermos verdadeiramente humanos e não trogloditas, misóginos, falsos, demolidores, desclassificados.
Que combatamos por fim a brutal desigualdade social que toma conta de nosso país, agravada mais ainda agora e colocada às claras pelo efeito da pandemia. Os pobres são os que mais têm sofrido e numerado a fila dos mortos pela Covid-19. Sem condições de se protegerem, pois sem renda que os mantenha têm que se expor às ruas em busca de comida, teto e trabalho. Não é a doença que discrimina os infectados e mortos, mas o absurdo desprezo público pela acolhida e tratamento desse contingente de necessitados. Assim como os indígenas lançados à sorte pela total falta de cuidado pelos órgãos que se dizem competentes comandados por um presidente fake e miliciano.
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor e economista.