José Carlos Peliano (*) –
Estava com a ideia de escrever este texto há dias, mas uma coisa e outra me impediram de fazê-lo. Embora empurrando os dias de isolamento da pandemia com a barriga e a cabeça, a primeira para manter a forma e a segunda para manter os pensamentos em ordem, houve muitas atividades, leituras, estudos, “lives” e laços familiares para segurarem as horas passando e sendo passadas como é possível.
Lá pelas tantas vi em minha biblioteca um livrinho de ditados Zen, abri-o aleatoriamente sem antes não deixar de perguntar qual o meu recado para os dias que virão? A resposta veio: “act without doing, work without effort”. Em minha tradução, “aja sem atuar, trabalhe sem esforço”. Em outras palavras, como diz o verso da música de Zeca Pagodinho “deixa a vida me levar, vida leva eu”.
Aja sim, mas sem intervir, deixe as coisas seguirem como são. No entanto, se precisar que se altere algo, mas sem se esforçar. Como faz um peixe no rio, as águas o levam, quando quer mudar de direção ele apenas meneia suavemente as guelras e segue por outra corrente. Se a vida lhe vem bem, siga-a, se não, mude e vá noutro vento.
Foi aí que me chegou Jung com seu toque do ato “numinoso”, o Zen e eu, “de repente, não mais que de repente”, como me lembrou o verso de Vinícius de Moraes. Me dei conta que a gente sabe o que quer, sim, lá no fundo da gente, de algum lugar que os Freud, Lacan, Jung e tantos outros da vida, tanto procuraram, mapearam e ainda procuram mapear. Ainda que não se tenha certeza, nem que se diga em alto e bom som que não se tem a menor ideia, pois fique sabendo que sabe sim, que a menor ideia está lá onde a gente mesmo muitas vezes se sabota para não ver.
Então, o dito Zen chegou a mim porque eu precisava daquela resposta, eu já a tinha pronta mas precisava de algo externo para me mostrar, me comprovar o que eu já sabia de antemão. Isso é a necessidade do “outro”, seja ele qual for, nem que seja a gente mesmo. A resposta já estava comigo guardada nos meandros da mente, além de já estar seguindo a recomendação antes mesmo de a ter lido, ela apenas me confirmou. Poderia ser sim diferente. Uma outra resposta. O que talvez me fizesse pensar e reformular em mim alguma coisa. O importante foi ver que tudo na vida é uma relação, a gente com a gente mesmo, outras gentes e as coisas. Como em duas ou mais palavras.
Então, da relação entre o que li no Zen e o que já fazia, ou seja, a relação de mim com o mundo externo, vou à comparação entre duas ou mais palavras. Elas podem se assemelhar ou não, levando ao mesmo significado ou a diversos. Tomando emprestado, atrevida e pobremente, a ideia-conceito de Lacan, quando expressa que um significante leva a um ou outros significados. Como, por exemplo, entre “acabou-se o que era doce” e “acabou-se o que era docê”. Duas frases praticamente idênticas, à diferença de um circunflexo, mas de significados distintos.
Pois bem, para onde esta digressão leva este texto? Ela leva ao seu tema central, a diferença que faz uma letra ou pronúncia pelo acento como em “acabou-se o que era docê”. Aqui, o circunflexo altera o significante e leva a frase a outro significado.
Como os “homofonetos” – vocábulo, criado por mim, que apenas mostra quando a mesma pronúncia pode levar a outro ou outros entendimentos, e voltando a Lacan, quando um ou vários significantes podem levar a outro ou outros significados.
Assim, a palavra “eternamente” pode levar a “é ter na mente”, a “éter na mente”, a “eterna mente” e a “é terna mente”. Não é o objetivo aqui, mas só para constar que os homofonetos podem levar à complicação numa relação entre o sujeito e ele mesmo ou entre dois sujeitos diferentes. A complicação surge quando, ao se referir a determinado significado, a pessoa diz e pensa se referir a outro. A constância compulsiva em repetir isso para si ou para outro é que, reduzindo a questão ao extremo, pode acabar em um divã de analista.
Voltando ao que era dos “c” (casa, cabeça e comida), portanto, agindo sem interferir e trabalhando sem me esforçar, fui reler o livreto, chamado à época por panfleto (54 páginas), O Direito à Preguiça, de Paul Lafargue, publicado pela Kairós Livraria e Editora, São Paulo, 1980. Um pequeno grande livro, escrito por nada mais nada menos do que pelo genro de Karl Marx, casado com sua filha Laura Marx. O genro foi um dos principais do movimento operário internacional, tendo esse panfleto original (1880), o trabalho mais editado, traduzido e lido pelo movimento operário europeu, depois do clássico Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels.
Só para situar seu pensamento seguem duas citações sobre sua concepção do trabalho humano: “as nações pobres são aquelas onde o povo se sente à vontade; as nações ricas são aquelas onde ele é, normalmente, pobre” e “trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem, para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista” (p. 26).
Guardadas as devidas e honrosas proporções, o que disse Lafargue se assemelha, pelo inverso, ao ditado Zen acima transcrito: agir sem atuar e trabalhar sem se esforçar. Ele complementa atribuindo a Cristo ter pregado a preguiça no seu discurso na montanha (Evangelho segundo Mateus, cap. VI): “olhem os lírios crescendo nos campos, eles não trabalham nem tecem e, no entanto, digo, Salomão, em toda sua glória, nunca esteve tão brilhantemente vestido”.
No movimento operário europeu, Lafargue esteve ao lado de Marx e do político e primeiro líder do movimento na França, Jules Guesde. Os dois, em especial, foram os precursores em levantar à época a luta pelas questões do lazer e do modo de vida operários, que redundou mais tarde na conquista da jornada de trabalho de 8 horas.
Desafortunadamente, ao me ver diante da leitura de O Direito à Preguiça sobre a luta operária internacional por melhores condições de trabalho e vida quando li Jules “Guesde”, me esbarra em forte pancada na mente a triste lembrança de Paulo “Guedes”, o oposto, integrante do movimento neoliberal na luta pelas melhores condições de renda e patrimônio da classe bancária e financeira. Que estrago faz um “s” em lugares diferentes em dois vocábulos de raiz semelhante, não?
Aqui não se trata de mesma pronúncia de palavras com significados diferentes, mas de uma letra em posições diferentes em duas palavras que leva a significados terrivelmente desassemelhados. É a velha e conhecida constatação de Marx que indica: “a história se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Na minha leitura, o Guesde da luta operária agora vê sua farsa personificada em Guedes. A tragédia se deu na ditadura quando muitos trabalhadores sofreram no corpo e todos eles no bolso. A farsa se dá agora com a figura que descura sem fé nem piedade a nobre profissão do economista. Guedes vá ler Marx e Lagarde para você, quem sabe, conseguir ver a desgraça e a destruição que traz e provoca aos trabalhadores brasileiros.
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.