José Carlos Peliano (*) –
Há um ditado árabe que se expressa mais ou menos assim: “se uma coisa ruim acontece e logo em seguida outra também ruim, com certeza virá uma terceira pior”. Transpondo-o para o caso do Brasil, é possível afirmar com as devidas ressalvas que veio o impeachment de Dilma, em seguida a eleição do Coiso e por fim a chegada da pandemia. É muita desgraça sem tamanho para um povo que se achava vivendo num país abençoado por Deus e bonito por natureza. Que beleza!
O que faz uma crença arraigada há anos de que a proteção divina do país o livra de maiores perturbações sejam elas quais forem. Parte desta crença, no entanto, muito provavelmente vem de cima e de baixo. De cima, das classes mais ricas, é uma forma de empurrar os problemas da sociedade com a barriga, de um lado, e de se deixar enganar a si mesmas e aos demais das classes menos aquinhoadas. De baixo, das classes mais pobres, é uma forma de se fazerem aceitar a vida que têm do jeito que é possível, mas também, e principalmente, o lenitivo que encontram na religião, seja ela qual for, de acreditarem que o céu abençoa a eles e seus semelhantes para levarem em frente a saga da pobre vida. O sacrifício que levam no dia a dia será um dia recompensado.
Pois essa crença, como se depreende de seus efeitos, consegue aos trancos e barrancos camuflar as diferenças sociais e econômicas gritantes entre os dois grupos de classes e dentro delas. A justificativa mais conhecida é a da competição que se manifesta na meritocracia. A sociedade capitalista se assenta nesse predicado. Assim, quem tem mais condições se estabelece. É preciso tirar vantagem em tudo - a famosa Lei de Gérson. Não conseguiu ser ninguém na vida porque não estudou, ou se preparou, ou é vagabundo. Há uma disputa velada entre um e outro em cada atividade como padrão de comportamento para se sair bem na vida. Nem que um se aproveite da ingenuidade ou da falta de conhecimento do outro.
Pois, então, em meio a essa flagrante desigualdade social e econômica presente no Brasil, a qual vem aumentando cada vez mais no atual desgoverno, junta-se as consequências diretas do golpe político que começou no impeachment e termina na eleição do capitão, tornando o país um caldeirão fadado a transbordar de indignação, ódio e transgressões de toda ordem. Para completar o quadro, chega a pandemia do coronavírus. Os números de infectados e mortos aumentam a cada dia levando as estatísticas sanitárias a chegarem próximas às primeiras no ranking mundial. Uma situação certamente preocupante para não dizer catastrófica. O isolamento social e o consequente distanciamento atualmente entre as pessoas dificultam reações de rua em proporções significativas.
Todos os países foram abalados pela pandemia, uns mais outros menos, mas todos se viram corroídos pelo vírus da desigualdade trazido direta ou indiretamente pelo capitalismo. Conseguem mal ou bem começar a reduzir os efeitos maléficos do vírus na população e na economia, mas se veem com dificuldades enormes para saírem razoavelmente bem da crise. Como voltar a retomar as atividades? Quando será isso? Do mesmo jeito ou diferente? Quão diferente? O que fazer? Como fazer?
Em entrevista ao Le Monde, o filósofo e sociólogo francês Edgard Morin põe o dedo na ferida ao relembrar que por trás de toda essa desordem social e econômica mundial, na qual o Brasil é um dos destacados representantes, há uma “crise da humanidade que não consegue se constituir em humanidade”. A chegada do vírus conseguiu trazer à tona em todos os países as contradições do sistema não só público no atendimento dos serviços à população, como privado quanto a parada na produção e nas vendas. Os efeitos têm sido severos, sofre a natureza pelo descuido e devastação constantes; a economia pela desarticulação das relações de produção entre atividades e setores; o trabalho pelo aumento considerável do desemprego e da desocupação nas atividades ambulantes, e a desigualdade entre pessoas e países pelo aumento do fosso entre ricos e pobres e o desamparo desses pelos serviços de assistência médica e social. Destaca Morin a falta geral de solidariedade, o consumismo exacerbado e uma franca alienação frente ao sentido da vida saudável e confortável.
Mas vamos à sabedoria milenar chinesa. A crise é conceituada como a situação em que o perigo e a oportunidade andam de mãos dadas. Ou se erra o passo ou se acha o caminho. Na atual conjuntura mundial os países se encontram nessa encruzilhada. Para onde e como prosseguir? A pandemia chegou para evidenciar que as estruturas sociais e econômicas estão gastas e imprestáveis. Não há de ser com o neoliberalismo que o mundo conseguirá ficar de pé novamente. O seu pressuposto da competição desenfreada para chegar na frente os mais eficazes e eficientes está com os dias contados.
O reverso da medalha da competição é a derrota para milhões e milhões de competidores alçados que serão para os degraus mais baixos da pirâmide social e econômica. É hora de cuidar desses derrotados pela desumanidade do sistema. Afinal os que chegaram na frente só conseguiram porque existiram derrotados. Uma forma de solidariedade às avessas. Está na hora de tratar essa solidariedade de frente e construir uma solidariedade justa, social e econômica, direitos e oportunidades realmente iguais. A humanidade pede isso para progredir afortunada e com bem-estar. Caso contrário, o contrário em que já vivemos continuará nos massacrando e destruindo um futuro que ainda nem começou.
A pandemia é a grande oportunidade de nos livrarmos de um sistema injusto e desigual para construirmos uma nova maneira de nos relacionarmos na sociedade e na economia. Inclusive na natureza ao tratá-la como nos tratamos a nós mesmos. Ao mesmo tempo, renovarmos nossas forças, direitos e justiça para eliminarmos toda forma de tirania, ditadura e fascismo da face da Terra. Nos livrarmos de regimes autoritários e desumanos com déspotas de toda ordem. Façamos da paz, solidariedade, humildade e compartilhamento, nossas imagens e semelhanças.
Um belo exemplo de um ser humano digno e justo com quem devemos nos orgulhar de ver e conviver veio hoje pelo WhatsApp. Barruada é um senhor que trabalha vendendo cachorro quente na frente do colégio Salesiano em Recife. Por conta do desaparecimento de todos por conta do isolamento social pediu ajuda para poder passar pela falta de vendas. Enviou mensagens com os dados de sua conta bancária. O dinheiro começou a chegar de alunos, professores e familiares a ponto de ultrapassar as suas necessidades. O que ocorreu então? Ele envia nova mensagem a todos pedindo para interromper as transferências porque já tinha atingido o limite pretendido. Esse é o homem novo para a reconstrução do país após a pandemia. Não é querer tirar vantagem, não é obter lucro a qualquer custo ou oportunidade, mas é pedir colaboração, uma forma de cooperação entre quem tem e quem não tem. Um sistema informal de cotas para desfazer com humanidade e generosidade o perfil da desigualdade secular do nosso país.
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(*) Jose Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.