José Carlos Peliano (*) –
A poltrona preferida me aguardou até agora para me receber e eu por em ordem minhas tarefas não manuais. Pego o laptop para ver o que tenho para fazer. Venho das tarefas tipicamente manuais como, neste período de isolamento social, a faina quase diária de ajudar minha mulher na lavagem do banheiro e quarto pela manhã, depois de meia dúzia de muitas pequenas coisas feitas pela casa afora, até depois do almoço lavando talheres, pratos e panelas. À tarde consertos, arrumações e que tais.
Olha aí uma coisa que comecei a gostar de fazer ao longo da vida, que é a lavagem na pia da cozinha. Me dei conta que se trata de um exercício de paciência, organização, jeito e principalmente meditação. Sim, consigo meditar com a água escorrendo no prato ensaboado, a bucha passando no fundo da panela, a retirada de restos de comida para a lixeirinha ao lado da pia, a colocação dos lavados na ararinha de secar. Ao final, sinto um grande bem-estar depois de ver a pia vazia, limpa e grata por eu ter estado ali.
Oh, esta é uma coisa que meu cérebro me fez escrever sem eu ter pensado nela! A gente não só pensa, mas o cérebro conversa conosco através da mente o tempo todo. Freud dividiu a conversa em ego, id e superego. Como aqui não é divã de analista, vale a percepção de que ao pensarmos, ou falarmos e ouvirmos outra pessoa, de fato, estamos igualmente sendo pensados, falados e ouvidos por essa pessoa, ou por nós mesmos, quando estamos sós. Isto é, tenho hoje a intuição da certeza de que temos contatos invisíveis com as coisas, seja uma flor, uma planta, um cachorro, um pássaro, a cama de dormir, o copo d’água, o sapato. Relacionamos com as coisas o tempo todo e não nos damos conta. Nós as percebemos e elas nos percebem também.
Agora no período da pandemia essa relação me veio de maneira mais intensa porque estou mais isolado do mundo. Dá para perceber então que essa relação é uma forma de meditar junto com as coisas. Ela nos mostra que somos parte do quarto, da sala, do laptop, do livro, ah! Indispensável o livro, de todos da casa. Isso não é uma sensação literal, por mais óbvia que pareça, ela é sentida, vivida às claras, ao longo de cada dia. Uma forma de meditação na ação quando nosso universo pessoal entra em outra dimensão das coisas e dos outros seres vivos, ou noutras dimensões se cada coisa ou ser vivo também estiver nessa relação. Me aproprio da ideia dos físicos quânticos de que isso pode ser o multiverso já aqui ao nosso redor? Pelo menos um começo.
Algo como estar num holograma e ver tudo ao redor em outra perspectiva, outra dimensão. É como ver outro mundo num telescópio para as grandes dimensões ou num microscópio para as pequenas e perceber que vivemos em um patamar diferente desses dois ou mais patamares de vida. Tipo isso. E só é possível se dermos atenção para as coisas ao nosso redor, sejam grandes, pequenas, minúsculas, invisíveis. Cada um de nós é uma agulha no palheiro universal. Para não dizer nada, somos quase coisa alguma.
Se por um lado só sabemos disso por constatar que esses “mundos paralelos” existem e estamos no meio deles, por outro um diminuto vírus causa a rachadura do capitalismo. O que mostra os humanos têm questionável importância nesse multiverso. Embora haja enormes e honrosas exceções. A saber.
Hoje, 4 de maio, morre de corona vírus um dos nossos maiores letristas e poetas de todos os tempos, Aldir Blanc. O diminuto vírus levando nossa celebridade musical e poética. Ao mesmo tempo, segue junto Flávio Migliaccio, outro expoente artista do teatro, cinema e TV nacionais. Tudo indica que no seu caso foi o sofrimento com a depressão e a decepção pelos caminhos seguidos até aqui mundo afora, especialmente nosso país, há tempos sofrendo as consequências de um desgoverno de corte miliciano, inconsequente e tresloucado.
Duas perdas irreparáveis. Cada um no seu mundo de criação e arte. Sofre abalo sem precedentes a cultura nacional. O mundo artístico lamenta a falta sem tamanho que os dois irão fazer.
Ao juntar pandemia, isolamento social e perda de grandes nomes do cenário nacional, a sensação é de fragilidade, tristeza e desencanto. A vida segue, sim, em frente, mas menor, doída, saudosa. Incluo aqui a morte de nosso cachorro Chocolate, ocorrida dias atrás. Ele teve uma vida difícil. Achamo-lo atropelado no meio-fio há 5 anos. Foi tratado em duas clínicas de recuperação, mas permaneceu com as patas traseiras paralisadas. Um guerreiro solitário sem poder caminhar. Acho que meditava por calma, tranquilidade e doçura. Certamente estará correndo atrás de Aldir e Flávio.
O desapego à falta dos três deve demorar enquanto durar os absurdos e delinquências desse desgoverno sem precedentes. Ao tempo em que se avolumam nossos descontentamentos, indignações e revoltas. Quiçá consigamos nos juntar para tirar dos desmandos essa figura travestida de presidente sem postura, visão e formação. Como já disseram, não se trata de um estadista, mas de ser pequeno.
Nessa situação difícil em que vivemos, há uma saída, pelo menos para ver melhor o mundo ao redor. Recuperando nossa percepção mais detida e acurada das coisas, objetos e pessoas com as quais convivemos em casa no isolamento. Acredito mesmo que isso nos ajuda muito. Pelo menos para mim e os que vivem comigo estamos verificando isso como nunca antes. A vida agora está meio que em câmera lenta em comparação a antes. Assim, podemos ver as coisas em seus detalhes, os objetos mais detidamente, as pessoas com mais calma, solidariedade, paciência, atenção. E dando maior valor a cada dia ao simples, ao comum, ao necessário. Os supérfluos perdem sentido, lugar e significado. Até um poema passa a ser lido e apreciado para quem não tem costume de gostar de poesia.
Para Aldir Blanc
entre o bêbado e a equilibrista
não há bala com bala nem Bombril
que tire a energia do artista
na nação bananeira do Brasil
na corda bamba faz a sua pista
quando necessita usa o seu “kill Bill”
com invenção e graça que conquista
pela arte sem cara de servil
o Brasil não conhece o Brasil, sim
desde os becos de onde veio o funk
às pastorinhas nos pés do sem fim
que o samba, o xaxado, o xote nos banque
com o tambor, rabeca e o bandolim
para trazer de volta o Aldir Blanc
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(*) José Carlos Peliano, poeta, escritor, economista.