Luiz Martins da Silva –
Eu sabia que Helival não era cascateiro, pelo contrário, sujeito sério, na faculdade e, depois, no trabalho, onde chegara antes, já admitido, eu é que era estagiário. Um dia, pedi-lhe detalhes sobre o homem do disco-voador. Por acaso eu vou lá hoje, me disse. Posso ir junto? Quer ir, vamos, mas hoje estou indo só pra ver se ele avançou em alguma coisa, ‘tava muito parado’.
O homem fazia disco-voador, mas não tinha telefone. O jeito era ir lá. Pedimos a kombi do jornal e fomos ao Núcleo Bandeirante. Coincidência, chegamos no exato momento em que artesão de OVNI estava com a mão na massa, quero dizer, nos arames. Um aranzel danado, uma prolixidade de hastes ligando o meio da nave à cobertura, que era de lona. O homem estava lá em cima, atrepado, nos acabamentos.
Camiseta, bermuda, sandália, uns 45 anos. Mas aquele jeitão dele, ali, naquela coisa, de certa maneira confirmou uma desconfiança que eu já levava no íntimo: maluqueira. Foi então, que eu me lembrei, o Helival era ao mesmo tempo comunista e místico, ligado em leituras esotéricas. Mas era bom repórter, texto bom, faro perfeito, descobridor de boas histórias. Só que aquela tava parecendo boa demais. Àquela época, a cidade andava cheia de “cascateiros”.
Na maior desfaçatez, “jornalistas”, assim, entre aspas, inventavam cada uma... Um tal de bebê anjo, que depois virou bebê diabo, deu até em romaria numa cidade-satélite, sem que ele existisse, de fato. A famosa “Loira do Chevette Branco”, que também nunca existiu, vivia assustando a cidade. Era puríssima ficção. E uma dupla, repórter e fotógrafo, ia para a rua, na maior cara de pau, para registrar depoimentos, “povo fala”, se é que eles não inventavam também as conversas. O que não era ficção, pena que não fosse, a censura mandava pegar leve, o escabroso crime, o Caso Ana Lídia, a menina loirinha, um anjinho de cabelos cacheados, vítima de um falso sequestro, o próprio irmão se prestara à farsa, mas depois que a gangue pegou o dinheiro eles se entupiram de drogas, abusaram, mataram, queimaram a menina e a enterraram num matagal.
O bando era formado por “filhinhos de papai”, os papais eram ministros, senadores... só o irmão da criança é que estava mais pra pé rapado, classe média baixa. Hoje, Ana Lídia é mártir, túmulo muito visitado, ex-votos, milagres... O crime prescreveu, talvez algum dia alguma comissão da verdade dê nomes oficiais aos bois, o vulgo sempre os soube. O Tropicalismo já era uma das páginas mais importantes na história da cultura brasileira, mas Caetano estava em Londres, gemendo versos do tipo so looking for flying socers in the sky.
E nós, na terra vermelha do Cerrado, testemunhando um cara ultimando retoques de um disco-voador. Ele falava pouco, dizia que estava prestes a dar por encerrada a missão que recebera, botar o disco pra voar, aquilo era um conhecimento que lhe fora passado por seres outros, remanescentes dos Vímanas, dos Atlantes, algo assim. Tempos depois, fiquei sabendo, pelo próprio Helival, que o disco tinha voado, subira pouco mais de 50 metros, mas voara. Uma proeza bem mais pobre do que a de Santos Dumont, mas o autor se deu por descompromissado com as entidades desencarnadas que lhe haviam cobrado a obrigação. Não houve cobertura. O fato mais midiático do mundo, sem cobertura alguma, mas o homem não tinha o menor faro para notícia, não avisou a ninguém, nem ao fiel Helival, que o acompanhara, passo a passo. Houve testemunhas, poucas, sumidas, sem depoimentos. Não foi possível sequer reconstituir o fato, que hoje conto de memória. A preocupação daquele fabricante de disco-voador não era sair na imprensa, mas se livrar de um encargo espiritual, dívida finalmente resgatada.