"A vida é de quem se atreve a viver".


O circo decadente, ou: Não tinha idade para ir conferir desatinos

Luiz Martins da Silva –

Isto foi numa época em que os horrores tinham lá o seu encantamento, muito embora não como esses de hoje, tempo em que todas as patologias e bestialidades andam à solta, da esquina da rua onde moramos às colunatas dos palácios e condomínios dos poderosos.

Àquele tempo, havia, sim, toda sorte de crimes, mas não nessa avalanche descomunal do presente. Existiam as bestas humanas, mas não com esses requintes de crueldade de agora. Eram muito raros os casos de raptarem crianças e levá-las ao baldio, jogar álcool e tacar fogo. E depois de presas, confessar que o fizeram por vingança, crime passional, um anjinho inocente pagando pelas monstruosidades dos outros. Houve, reconheço, casos desse nível do abominável, um deles, denominado de “A fera da Penha”, saiu na revista O Cruzeiro.

Havia, claro, o gosto pelo bizarro, a ponto de alguém separar alguns trocados para ir ver o aberrante, de trem-fantasma de parquinho de diversões a filmes de terror no cineminha da cidade. Esses cinemas, coitados, difícil um que não tenha virado serventia de outro tipo de sensacionalismo, os supostos milagres e curas intermediados por guias ‘espirituais’ inseparáveis das sacolinhas de doações e dízimos.

Cidade pequena, pouca diversão. Os “de maior” era de hábito saírem praticamente toda noite, índole similar à dos gatos não castrados, rodar e rondar o mundo a fundamentar os temores dos pais, especialmente das mães. Dia seguinte, algo da crônica do visto, sabido e ouvido em relação ao inesgotável mundo do escabroso.

Irmão meu veio narrando umas atrações de um cirquinho, aparecido por lá dias antes. Para começo, o tal do circo era tão decadente que apareciam rombos na parte de cima da lona. O diferencial eram uns touros, coisas de soltar os bichos brabos para os desempenhos de uns toureiros fingindo ser espanhóis, mas sem abrir a boca para não dar na cara a fajutice que arrebatava gritos de olé de uma plateia de idiotas.

Mas, o que me interessou mesmo, apesar de saber da interdição para a minha idade (a não ser em matinês), foi a notícia de haver naquela espelunca muita “luta livre”. O meu irmão gostava, mas, desdenhando: velhacaria, certeza, eles combinarem entre si quem iria ganhar. Simulavam a força das porradas, os desmaios e, sobretudo, o tal golpe mata-leão.

Fiquei, porém, muito afoito por dar um jeito de ir ver uma bizarrice contada, a de ter um dos lutadores uma dúzia de dedos nos pés, ou seja, seis em cada um. De quebra, o monstrengo era veloz e perverso na tesoura voadora.

Todos lá em casa nos admiramos muito da anomalia referida, mas, logo começamos a debochar da narrativa, ao que o meu irmão ficou brabo, dizendo que apostava o que quisessem, querendo ele, em torna, apenas a paga do ingresso. Duvidar da palavra de homem, pois fossem lá a conferir.

Meu pai foi o primeiro a fazer corpo mole, disse que o dinheiro dele era muito suado para gastar com heresia. Minha mãe, muito católica que era, já pôs uma minhoca em nossas cabeças, que, aquilo, se verdade, só poderia ser artimanha de alguém com parte com o Cão, pois feitio de filho de Deus não podia ser.

Pelo resto do dia, o assunto rendeu, outros irmãos começaram a fazer troça, elaborando pilhérias sobre o que o tal lutador teria a mais do que os comuns mortais. Quatro orelhas? Dois umbigos... Parem por aí, advertiu minha mãe, “Ora, onde já se viu, já estavam a debandar para indescências!”.

Passada a circunstância, fui ao meu irmão num momento oportuno, saber se ele me levaria ao dito circo dos horrores, para eu ver como lutava o tal homem dos doze dedos. Também estava curioso por averiguar a pertinência de um trecho da história. Se ele derrubava o desafiante com uma tranca no pescoço, como é que o pescoço do infeliz não se destroncava ao bater a cabeça no tablado. Meu irmão admitiu, estava ali algo impossível de fingimento, ele próprio vira o desgraçado rodopiar no espaço e ir estatelar o coco com toda força e estampido.

“Impossível”, argumentou, “você é de menor, vai estar de noite e não vão deixar, mesmo comprando ingresso de adulto”. Foi uma pena. Eu me imaginava faceiro, me vangloriando para os colegas de ginásio da noite em que meu irmão me levara para ir ver o monstro dos 22 dedos derrubar de cambota um outro, como se bota abaixo uma manga madura do pé com um rebolo.

Tempos depois, reencontrando o meu irmão do caso contado, perguntei se ele ainda se lembrava do tal homem dos seis dedos em cada pé. “Ora, se me lembro!”. E ainda reforçou: “Vendo desde lá de baixo, ainda imaginei se aquilo não era truque, a iluminação do circo pobre era péssima, podiam ser dedos emendados com uma cola de boa marca”. Acontece, garantiu, que terminado o espetáculo ele fora com mais uns incrédulos aos bastidores, a pedir para ver de perto as diferenças do “bicho”.

– Só faltou, então, vocês terem pedido para constatar se ele tinha em dobrou outras partes do corpo – galhofei.

– O cara já estava trocando de roupa e nós vimos ele só de cueca – esclareceu.

De minha parte, uma coisa eu garanto. Meu irmão, ao longo desta vida na qual, graças a Deus, já envelhecemos, nunca peguei meu irmão em alguma mentira. De qualquer maneira, mesmo sem duvidar dele, aquela fica sendo a única vez em que alguém viu alguém, da raça humana, com doze dedos nos pés. Hoje, ainda estranhando o acontecido, me vem uma ponderação: e se o tal lutador de luta livre fosse cruza de humano com ET [extraterrrestre]?

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