"A vida é de quem se atreve a viver".


Naquele dia histórico, na residência oficial do governador de Brasília, José Aparecido, o poeta russo Eugênio Evtuchenko, um siberiano que gostava de usar roupas vistosas, desviou-se do protocolo e dirigiu-se ao poeta Luís Turiba e fez a simbólica troca de gravatas
Esclarecido o rumoroso caso das gravatas ´comunistas´, 34 anos depois

Luiz Martins da Silva –

Corria a animada gestão do governador do Distrito Federal (1985-1988), José Aparecido de Oliveira (1929-2007), num contexto de perestroika, lá e cá, ou seja, na União Soviética e, por algo parecido, também no Brasil.

A residência oficial de Águas Claras não era somente a casa onde ia dormir o governador, mas um espaço também destinado a eventos políticos, diplomáticos e artísticos. Num destes, foi oferecido um almoço em homenagem ao poeta russo Eugênio Evtuchenko (Yevgeney Aleksándrovitch Yevtushenko – 1932-2017), importante a ponto de ter merecido, em vida, um museu. Também foi muito prestigiado nos Estados Unidos, onde viveu boa parte do seu tempo e foi professor e aclamado em várias academias literárias.

E o tal almoço não teria passado de um singelo gesto de amizade e cooperação a merecer, no máximo, uma nota em coluna social, não fosse um inesperado e curioso gesto: o poeta russo propor a um poeta brasileiro uma troca de gravatas.

A enigmática quebra do protocolo deu o que falar e gerou umas quantas interpretações. À época, os “russos” não davam um passo sem amarração ideológica, ainda que o autor de Autobiografia Precoce não fosse mais associado à imagem de um comunista. No passado, escrevera bravamente contra o nazismo e rejeitando o antissemitismo na União Soviética.

Penso na vergonha
de meus descendentes
quando ajustarem as contas com a torpeza.
Lembrar-se-ão dos tempos estranhos
onde a honestidade mais simples
chamava-se coragem!
(Do poema Conversação)

Ao seu gosto, “Zé Aparecido”, teria sido ministro das Relações Exteriores. Mesmo não tendo chegado ao Itamaraty, conquista de vários outros políticos, alguns sem nunca ter nem imaginado (Abreu Sodré, por exemplo), exerceu forte influência diplomática. Foi grande batalhador pela integração dos países lusófonos e embaixador do Brasil em Portugal, onde tinha entre grandes amigos o ex-primeiro-ministro Mário Soares.

Dado, portanto, a iniciativas diplomáticas, Aparecido, um dos fundadores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), gostava de cercar-se de artistas, notadamente escritores, tendo trazido vários a Brasília, como foi o caso de Gore Vidal (1925-2012), um dos literatos norte-americanos de muito fôlego.

Trazer e festejar um russo, porém, foi um moderado contraponto, bem ao clima da redemocratização. Uma iniciativa como esta não seria, claro, bem avaliada quando do regime militar pós-64, muito embora, em termos comerciais, as relações entre Brasil e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS – 1922-1991) tenham sido das melhores e das mais afinadas com o espírito do “pragmatismo responsável” dos chanceleres Azeredo da Silveira (1917-1990) e Saraiva Guerreiro (1918-2011).

O lance das gravatas ocorreu da seguinte maneira. Na agenda de Evtuchenko em Brasília constava o referido almoço, que reuniu dezenas de personalidades, entre elas, escritores, especialmente poetas, acadêmicos e pessoal das embaixadas. Mesmo durante o regime militar brasileiro, a embaixada da URSS era muito movimentada, lá ocorrendo celebrações, apresentações de grupos e umas sem quantas recepções, como a que contou com a presença de Luís Carlos Prestes (1898-1990), pouco depois de seu retorno ao Brasil (1979). Paradoxalmente, a embaixada da Rússia não manteve a mesma animação pública dos tempos da URSS.

Convidados devidamente situados em seus lugares, eis que chega, finalmente, o carismático homenageado. Evtuchenko era um siberiano que gostava de usar túnicas folk e roupas vistosas. Nesse dia, porém, veio de terno, como era previsto, o traje passeio. Ao ser conduzido, desviou-se dos “dispositivos” e foi ao encontro do poeta Luís Turiba. Disse algumas palavras enquanto tirava a sua gravata, no que foi imitado pelo jornalista, ali presente como escritor e repórter da Empresa Brasileira de Notícias (EBN, hoje, EBC). Foram aplaudidos. Por ocasião de visitas diplomáticas, é comum a troca de presentes, tradição desde os tempos tribais. Mas, daquela forma, de improviso e sem mais nem que...!

A troca de gravatas teria permanecido tão somente na cobiça de um estrangeiro por uma estamparia espalhafatosa, supostamente um traço brasileiro e tropical, não fosse o surgimento de rumores, ainda típicos dos “anos de chumbo”, bem ao estilo das teorias da conspiração. Mesmo ultrapassada a Guerra Fria, a polarização Washington—Moscou persistia. Pouca gente sabia, mas Turiba tinha sido preso político, tendo conhecido na prisão as crueldades com que o Golpe Militar de 1964 tratava os dissidentes daqui. Seria uma deferência?

Àquela época, de tenra redemocratização brasileira, os boatos e suposições ainda eram um insumo fertilizador para as leituras hermenêuticas de qualquer “posicionamento”. Como afirmara certa vez, a repressão política no Brasil dera margem ao surgimento de uma espécie de barroquismo, segundo Antônio Houaiss, em que as coisas eram ditas não diretamente, mas por meio de todo um rapapé simbólico. As gravatas, uma vermelha e a outra ilustrada por flores tropicais, simbolizariam a confraternização de dois poetas dissidentes e... Comunistas?

Em tom mais de provocação, surgiram comentários polarizados e paradoxais. Evtuchenko, já ‘americanizado’, seria um ‘cabeça feita’ da CIA, daí, viver em périplos pelo mundo e em mundanidades recheadas de palestras e banquetes. Turiba, por sua vez, oportuno divulgador, por trabalhar para o que os soviéticos entendiam como um simulacro brasileiro da outrora global Agência Tass. Curioso, tal agência noticiosa mantinha em Brasília um jornalista que tinha carro com chapa do Corpo Diplomático. A Tass tinha um acordo de cooperação com a EBN. Coincidências?

Os players que, de fato, atuavam nos mundos político, diplomático e econômico, contestavam: o episódio das gravatas não fora planejado; não se tratava de uma dessas tiradas de “improviso” combinadas para ‘humanizar’ as personalidades e amenizar a chatice dos eventos protocolares. Mas, concordavam num ponto: a simpática comutação das gravatas adocicava as tratativas em andamento para otimizar a balança comercial do Brasil com o todo bloco de países do Leste Europeu, ainda denominado de “Cortina de Ferro”.

Uma mistura de verdades com “cascatas” (como se dizia no velho jargão jornalístico), como pude checar com o próprio Turiba. Ele me disse que foi pego de surpresa; que jamais poderia supor que Evtuchenko teria sido “brifado” para teatralizar um gesto de amizade com um poeta comunista brasileiro. Houve indícios, houve. Turiba trabalhava também para a Gazeta Mercantil, à época, importantíssimo jornal econômico, uma espécie de Financial Times brasileiro. Não cheguei a constatar, mas o Pravda teria dado uma notinha sobre a ‘propaganda’ espontânea das gravatas soviéticas feita pelo grande poeta.

A colorida gravata tropical-brasileira de Turiba, na verdade, era italiana. A modestíssima gravata oferecida por Evtuchenko, segundo apurado, era ‘americana’, mas, de origem, brasileira. Fora parar nas lojas norte-americanas por força de uma pareceria (joint-venture) contratada entre um fabricante brasileiro e um importador dos EUA. “Uma gravata do tipo bem barata”, confirmou Luís Turiba. “Não fiquei no prejuízo”, afirmou, “pois, por onde circulava as pessoas iam logo reconhecendo: ‘Olha a gravata do poeta comunista!’”.

Nessa história, ficou algo de ambíguo e, com certeza, ainda debitado na conta dos silogismos e lugares comuns: ‘Dois poetas comunistas trocaram gravatas em almoço diplomático’. Ora, o almoço era extraoficial.

 Evtuchenko era, digamos, um comunista tardio. O mesmo poder-se-ia dizer em relação ao poeta que, quando jovem estudante fora preso por conspirar contra um regime truculento. Por sua vez, fantasias puras: a do poeta russo ‘cantado’ pela CIA e a do poeta brasileiro, contatado pela KGB.

Moral da história, em tempos ainda de bicos calados, duas gravatas foram mais eloquentes do que os efusivos discursos e brindes, mas formais, entre anfitrião e convidado. No contraponto planejado ou improvisado, Evtuchenko era um glamuroso encantador de auditórios lotados. Turiba, até hoje, um eufórico letrista de blocos carnavalescos e fã incondicional de outro poeta soviético, Vladimir Mayakovski (1893-1930). O fato é que os regimes políticos passam e os poetas ficam.

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