Luiz Martins da Silva –
Isto foi num tempo em que aquela cidade era muito pequena. Pequena de se conhecerem todos. Saberem onde moravam todos. E da vida de todos. Mas, estando na franja do futuro Distrito Federal e, por conseguinte, da futura Capital, algo já começava a mudar na modorrenta rotina, do lugarejo e de cada um.
Turistas não havia e a própria palavra turismo soava como alguma coisa relacionada à Guerra Fria, talvez relativa ao lançamento de foguetes, espaçonaves, ou com a descoberta de alguma coisa impactante, a fotografia colorida, o rádio portátil, os tecidos não amarrotáveis e um bocado de novidades intrínsecas a algo ainda muito duvidoso, que a Capital viesse a deixar o Rio de Janeiro, a “Cidade Maravilhosa”, para se estabelecer no ermo situado entre o cerrado e os chapadões.
Lugar de novidades era, por vezes, o Bar do Seu Mané. Mistura de bodega, bar e café, onde a especialidade era mesmo um conjunto de bules de aço inoxidável, mergulhados indefinidamente numa cuba de água fervente, mantida na eletricidade, coisa admirável, uma “resistência”. E como resistiam, sempre escaldantes e a qualquer hora, café e leite. O complemento também saía fumegando, lá de dentro, uma travessa atrás da outra, de pasteis e pães de queijo.
Entre o quente e o gelado, as conversas fluíam desde o último fuxico da vida alheia às disputas entre os “americanos” e os “russos”, na Terra e no Cosmos. Mas, a conversa chegava mesmo às estrelas era com os últimos feitos de Pelé e Garrincha, bem como nas chances de vir o Brasil a “sagrar-se”, mais uma vez, campeão mundial de futebol.
“Bem gelada!”, era assim como os bebedores de cerveja ordenavam mais uma, ao que o Seu Mané prontamente abria, com destreza e suavidade, mais uma garrafa, para fazer sossegar nos copos, apressados em se esvaziar, o elegante “colarinho”.
Figura tão frequente no Bar do Seu Mané, tanto quanto as mesas e as cadeiras, era um senhor, conhecidíssimo falastrão, sempre prestativo a contar casos e proezas, sobretudo proezas, coisas, como se dizia à época, “do arco da velha”, mais propriamente da arca da velha, um baú de velharias, histórias de um tempo mais remoto e ainda mais mágico, em que a região era rarefeita de gente e progresso.
Quase ninguém lhe sabia o nome de batismo, tão antigo e universal o apelido. Toda a cidade o conhecia, simplesmente, como “O Bodão”, aumentativo denotador de exageros. Se houvesse algum pingo de verdade nos seus “causos”, por certo ele a aumentava a uma dimensão do absoluto inacreditável. Um problema para ele é que o repertório começava a se repetir e, com as repetições, as interrupções: “Esta aí a gente já conhece”.
Pois foi numa dessas aparições raras de forasteiros, que pelo Bar do Seu Mané aportaram dois senhores, até bem jovens, com fardas cáqui, rajadas, daquelas típicas da camuflagem dos soldados treinados para combater nas selvas. Forte referência daquela época era o que acontecia, dia a dia, na recente Guerra do Vietnã, explosiva em fatos quase sempre a abrir e a encerrar os boletins noticiosos que circulavam pelas ondas curtas de rádio. As entonações dos locutores eram tão pungentes que faziam parecer ao povo simples que o Vietnã não era tão distante e que, por exemplo, “o delta do Mekong” ficasse, quem sabe, pouco depois do Pantanal mato-grossense.
Como fazia de costume e sem causar mais enfado (ninguém ligava mais para ele), Bodão chegou e logo notou a presença dos desconhecidos.
Seriam os tais turistas? Mas, habilidosa e cuidadosamente, ele foi de mesa em mesa, papo com um, brincadeira com outro, sempre filando um copo de cerveja e um cigarro. Nisto ele era um mestre, um “bicão”, como assim o qualificavam, um esperto. Uma espécie de anfitrião ao contrário. Não os donos da mesa a convidá-lo, mas, ele próprio, a se fazer de presença aguardada e esperada. Na realidade, um chato, que já se tornara parte do ambiente, não raro, como colaborador. Na falta de garçom, ele se voluntariava em recolher garrafas, copos, cinzeiros, lixo...
Por fim, Bodão abordou os dois ‘estrangeiros’. Seriam “gringos”? Pela cidade já tinham aparecido uns ‘sujeitos’ com uma fala enrolada, querendo localizar terras à venda. Vários fazendeiros apressavam-se em anunciar glebas e lotes, ante a expectativa de que a Nova Capital a tudo iria valorizar pelas redondezas em matéria de ‘investimentos imobiliários’.
De início, o assédio não foi bem recebido. Sem qualquer noção de boas maneiras, Bodão chegava para uma pessoa e estendia a mão, ficando o interlocutor sem ação, a não ser corresponder ao gesto, no caso dele, apertando a mão suada e áspera de uma pessoa que, quando não a contar proezas de super-herói, era um modesto servente de pedreiro.
– Muito prazer, Bodão.
Os dois ‘homens de fora’ fizeram um ar de desagrado. Deixaram o intruso com a mão vazia e no ar. Ainda em pé, Bodão arriscou mais uma tentativa:
– Peço desculpas se estou sendo inconveniente, mas, como conheço muito bem a região, talvez os senhores precisem de um guia. Conheço cada palmo num raio de cem léguas. Por acaso, os senhores estão à procura de terras?
– Não, não é o caso.
– Pois, que me desculpem. Eu só queria ser hospitaleiro. Mais uma vez, me desculpem, qual é o assunto de vocês por aqui?
– Caça e pesca.
– Ah, pois, então, estão falando com a pessoa certa.
– E por quê?
– Porque eu sou o maior caçador e pescador de toda esta região, desafio quem seja melhor do que eu em caçar e pescar no cruzamento do Rio Maranhão até o Rio Preto e no cruzamento do Rio Paranã até o Urucuia. Sei pescar em tudo quanto é água, margem, raso, fundura... Com anzol, tarrafa, dinamite...
– Dinamite?
– Dinamite, sim. Quando a encomenda é muito grande, eu sou muito prático, faço chover peixe. Aí, é só pedir ajuda para recolher as toneladas.
– O senhor sabe com quem está falando? – interveio um dos ‘homens de fora’.
À primeira altercação, o coletivo dos bebedores de cerveja e tomadores de café, café com leite, leite com chocolate... Comedores de pasteis e pães de queijo... Todos notaram ter surgido um estranhamento entre os forasteiros e o fanfarrão da cidade.
– Pelo que me informaram, vocês são caçadores e pescadores. E eu sou, por toda essa região, o maior caçador e pescador. Caçar, eu pego em armadilha ou mato de espingarda; peixe, é por encomenda. Anzol, cesto, barcaça, tonelada...
– E pesca até com dinamite! – reforçou o outro ‘homem de fora’.
– Sim, é isto mesmo. Querendo, a gente começa pela Lagoa Feia, que está bem pertinho...
– O senhor está é preso! – falou bem alto o primeiro ‘homem de fora’, o primeiro a fazer o uso da palavra.
– E eu posso saber o porquê de eu estar recebendo voz de prisão?
– Por que nós somos fiscais de caça e pesca e viemos aqui justamente para fiscalizar ocorrências de caça e pesca predatórias. No caso, o senhor está confessando crimes gravíssimos!
– Mas, primeiro, os senhores precisam saber com quem estão falando.
– E com quem nós estamos falando?
– Vocês estão falando com o maior mentiroso do mundo!
E todo o Bar do Seu Mané estrondou em gargalhadas. Riram muito, e por muito tempo. Até os visitantes. E foram estes mesmos que mandaram vir uma rodada de cerveja. O Bodão, claro, convidado ilustre.