"A vida é de quem se atreve a viver".


Luiz Martins: “Os índios da Tia Clarismunda eram, ao mesmo tempo, um misto de temor e curiosidade...”
Nós e os índios, ou: Como era o proceder da “Tia” Clarismunda

Luiz Martins da Silva –

“Mentirosa”. Ô palavra que machucava a Tia Clarismunda, aquela pessoa que tanto me encantou a meninice com lindas e hipnóticas histórias, entre elas, as suas vivências e pelejas com os índios. Ao tempo de criança, os causos por ela contados eram absolutamente reais. Deles não restava dúvida, pois também eu, no meu mundo, muito viajava e, literalmente, sonhava, pois, por mais que elas me embevecessem, elas tinham também um efeito sonífero.

Crescido, a racionalidade começava a questionar a veracidade e as conexões estabelecidas nas histórias da “tia” entre fatos, personagens e até certos seres deste e de outros mundos. Ela também era ciente de uma coleção de remédios e simpatias para tudo e que sobre as quais, vim a saber, não eram propriamente invenções dela, mas faziam parte de conhecimentos e contações que passam de geração em geração. Tempos depois, vim a me surpreender também um tio contador; um pai contador; e, agora, avidamente à espera de ser um avô contador.

Mas, aqui, o que vou referir é uma “Tia” que veio ao mundo Clarismunda, pois o seu nome era uma mistura de Clara e Raimundo, nomes respectivos de pai e mãe, a quem ela venerava quando das orações num altarzinho cheio de santos, estampas, fitinhas, velas e outros acessórios para as suas devoções e invocações. Lembro que, nas dificuldades, ou mesmo para pequenos incidentes do cotidiano, ela convocava especialmente o Anjo da Guarda; as Almas do Purgatório; e uns santinhos bem próximos, para proteção, achados e perdidos e andar no mato sem ofensas de cobras e outros bichos peçonhentos. Também tinha o cuidado de pedir licença a seres invisíveis para entrarmos em algum lugar. Da floresta, dos rios, das lagoas e banhados. Ela costumava recomendar respeito a esses lugares e recriminar bagunças, gritarias e desordens, condutas que poderiam causar o descontentamento das criaturas protetoras e dar origem a azares, em vez de bom proveito.

A “Tia Clarismunda”, mesmo sem muita instrução, considerava-se “crismada” para fazer o bem e ‘trazer clareza aos viventes achegados’. Gradativamente, ela veio a se ausentar e, depois, de vez. Um namorico com um certo Teodorico evoluiu para noivado, casamento e mudança para uma chácara que ele tinha lá para as bandas dos aparados de uma serra que serve de testa para o vale do rio Paranã. Lá em casa, volta e meia ela reaparecia de visita, eram abraços, saudades e interjeições – ‘Como você cresceu... Como você já é um homem... Já tem até um bigodinho... Com certeza, já está de namorada!’.

O convite, dizia, “estava de pé”: aparecer, ir conhecer o seu pedacinho de chão, que não ficava muito longe da Cachoeira do Itiquira, embora fosse, segundo ela, um “fim de mundo” ainda habitado por lobos, onças, cobras descomunais e... Índios. Este detalhe era, ao mesmo tempo, um misto de temor e curiosidade. Nunca tínhamos visto índios “de verdade”, ou seja, ‘desses que moram em aldeias, vivem de caça e pesca, frutas, farinha de mandioca e fazendo festas para tudo’. Os índios que a gente tinha como artesanato na feira de domingo. Ou, então, aqueles índios ‘americanos’ que apareciam nos filmes, atacando fortes ou sendo perseguidos pelos batalhões.

Nunca vimos os “índios” da “Tia Clarismunda”, mas ela os mantinha nas suas contações e até nos mostrava ‘provas’ de que eles tinham andado por lá, ‘mexido’ numas coisas, levado outras e, por vezes, deixando algum ‘agrados’: um brinco com pena de arara; uma pulseira com sementes coloridas; um pingente com dente de raposa; e, uma única vez, um arco e uma flecha. Ela não gostava era quando eles deixavam “sinais de feitiçaria”, avisos de não estarem satisfeito com alguma coisa feita pelos “brancos”, pessoas que deixavam lixo nas margens dos rios e lagoas, quando iam fazer piquenique. Esses baderneiros não apagavam o fogo dos churrascos e isto resultava em queimadas.

Não demorou a ficarmos sabendo que o marido da “Tia” não gostava desse lado de ‘contadora de mentiras’ que a esposa tinha. Para nós, ele era um chato. Quando ela começa as narrativas, ele já a olhava de sobrolho e, por vezes, resmungava: “Lá vem tu, de novo, com essas fantasias!”. Ela não ligava. Até mesmo porque havia, entre elas e nós, um pacto implícito e jamais mencionado, de que nós, acreditando ou não, adorávamos quando ela vinha com os seus causos. E sempre era compreensiva com os desaparecimentos atribuídos aos ‘índios’, ou às ‘índias’, como foi da vez em que ela não recolhera umas calcinhas do varal e, na manhã seguinte, não estavam lá.

– Coitadas! Isto eu não considero roubo, mas necessidade. Roubo é o que os brancos vêm fazendo desde que chegaram por aqui, em 1500. Os índios tinham tudo e, agora, são obrigados a viver feito feras, escondidos, com medo e sem ter nada. E que mal as índias fazem em querer coisas boas das brancas? Coitadas, terem de cobrir as vergonhas apenas com tanguinhas de palha!

A “Tia Clarismunda” sempre tinha alguma condescendência para com os ‘índios’, em geral. Uma vez, quando ela e o marido tiveram de ir à cidade e deixar a chácara sem ninguém, os ‘índios’ vieram e fizeram um “rapa”. Levaram uma quantidade de várias coisas, mas, em compensação, deixaram uma enorme e bem trabalhada gamela, cheia de araticuns. Como que adivinharam. A “tia” adorava araticuns, embora o “tio” os detestasse, não lhes suportava o cheiro que, para a mulher, era um dos mais agradáveis perfumes silvestres. E eram muitas as frutas do Cerrado com a mesma linha de aromas.

E, assim, seguiu a vida dos dois, que não tiveram filhos e, talvez, por isto, a ‘tia’ fosse tão ligada a nós, seus ‘sobrinhos’. E isto era muito agradável e cheio de mimos, ela sempre tinha uma lembrança, uma coisinha, um achado, uma pedrinha preciosa encontrada no riacho etc. Numa das nossas visitas, levamos uma água de cheiro que a nossa mãe tinha comprado. Em retribuição, ganhamos uma colônia artesanal com cheiro do capim santo. E, aí, é que ela nos encabulou de vez. Enquanto o ‘tio’ vivia pedindo para ela parar com as “heresias”, ela cultivava ainda mais as suas considerações quase carinhosas para com aqueles “ladrões e vagabundos”, na opinião do ‘tio’. Detalhe intrigante: a colônia tinha sido um presente deixado pelos ‘índios’, certamente, pelas ‘índias’ que pegaram as calcinhas.

Talvez, por viverem num lugar muito solitário, com vizinhos distantes, minha ‘tia’ foi pegando cada vez mais gosto por aquela convivência enigmática com ‘índios’ e ‘índias’, sempre dispostos a deixar algo em troca do que levavam. Isto gerou rusgas com o ‘tio’. Não apenas ele qualificava de lorotas as histórias ‘indígenas’ da ‘tia’, como não gostou nada quando levaram ferramentas: picareta, pá, enxada e enxadão. Pensou até em fazer uma queixa na polícia. “Ora, homem, que ideia!”. A ‘tia’ contestou, argumentando que se fossem ladrões teriam arrombado a casa, o que nunca tinha acontecido. E viriam assaltar, de mão armada.

– Ora, você tem cada uma. Queria o que? Que os índios aparecessem na cidade, com dinheiro, e fossem à Casa da Lavoura comprar ferramentas? E por que será que eles têm tanto medo dos brancos? Com certeza, pelo tanto de perversidades que os brancos já fizeram com eles. Aqui, a gente tem de dar graças a Deus por eles nos terem como amigos. Eles são amigos à maneira deles. São selvagens. Não vê essas histórias dos brancos que levam presentes para trocar com os índios? E que tem uns índios que só vêm pegar os donativos se vierem escondidos? Que por ali havia índios, havia. Até encontraram desenhos deles em cavernas.

De fato, a região da bacia do Rio Paranã é uma das que foram habitadas pelos índios Avá Canoeiro, de triste desaparecimento. Há alguns anos, tiveram de levar os últimos seis deles para o Parque do Xingu, para que não fossem totalmente dizimados. Um das causas da sua quase extinção completa foi o gosto que tinham por carne de cavalo. Um cavalo que sumisse de uma fazenda, mesmo sem provas, deflagrava o ódio dos fazendeiros. E uma das maneiras de apressar o desaparecimento de índios era deixarem roupas contaminadas como atração. Sarampo, catapora e outras doenças faziam o ‘trabalho’. Sem violência, sem tiros, sem flechadas.

O tempo foi passando e as visitas dos ‘índios’ foram escasseando, até virarem de vez simples lendas que a ‘tia’ supostamente inventava. De nossa parte, também tivemos uma convivência, igualmente misteriosa, com os ‘índios’ da “Tia Clarismunda”. Certa vez, estando de férias e não tendo como viajar ou fazer algum programa de maior relevância, fomos passar uma semana, lá, com os ‘tios’, a pretexto de pescar alguma coisa no Rio Itiquira. No primeiro dia, foi aquela coisa, chegar, conversar, desfazer as mochilas, descansar e preparar as traquitanas para a pescaria na manhã seguinte. Aproveitar e também tomar banho nos remansos, o Itiquira tem corredeiras, se bobear, levam o banhista para longe e até rio abaixo.

Mal tomamos o café da manhã dos ‘tios’ – ela fazia um pão de queijo maravilhoso –, e fomos procurar um lugar de água mais parada e boa de peixe, um sinal era algum deles dar aqueles pulinhos para fora d’água. Outra certeza era jogar farelos e se ver a briga deles por agarrá-los. Deixar a acomodação voltar, lançar a isca e...

Só ela, mesmo. Só a Tia Clarismunda! Não é que ela havia preparado uma matula de lanches para nós? Nós nem sequer atinamos que a pescaria levaria algumas horas e que um banho de rio daria muita fome. Aconteceu, no entanto, que o dia estava muito quente e invertemos a ordem dos divertimentos. “Vamos logo nadar! Os peixes não vão embora, depois a gente pesca”. E, assim, se deu. Nadamos e nadamos. Ocorre que ao retornarmos à árvore aonde tínhamos deixado as roupas, as toalhas e os lanches... Nada! Ainda rodeamos, procuramos por alguma pegada, nada. Nenhum sinal. Nem de gente, nem de coisas.

Voltamos decepcionados e tristes para a casa dos ‘tios’.

Aquele lugar ‘estava’ minado de ladrões. Isto, sim. Foi a nossa conclusão. Mas, ao chegarmos, a ‘tia’, perplexa, perguntou, como que intrigada com a volta apressada: “Já?”. Então, contamos o ocorrido. E, claro, ela expressou a sua forte convicção:

-  Não falei? Não falei? São os índios.

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