"A vida é de quem se atreve a viver".


"Ninguém sabe dançar e nem há o que dançar, se você notou, as pessoas ficam dando voltas pelo salão e é isto o carnaval daqui"
Nada mais que um beijo, para sempre...

Luiz Martins da Silva –

Rose achou estranho aquele moço deixado sozinho em situação de desprezo. Todos se divertiam na pista. Para um vilarejo até que o bailinho estava animado. Não houve grana para trazer banda de fora, mas o conjuntinho local não decepcionava. Os músicos inventaram uns paletós de um estampado azulão com flores enormes de hibisco e chapéus de palha.

O repertório, o de sempre, o que sustenta, ranchos, antigas marchinhas, de “Abre alas” a “Me dá um dinheiro aí”. Àquele ano, porém, a bandinha adaptara o “Fuscão preto” num batidão oportuno. E a cada vez que repetiam, a galera urrava em coro, como que a gozar da miséria dos corações dilacerados.

Enquanto atendia a sucessivos pedidos de dança, Rose não tirava os olhos de um moço largado, tristonho, sozinho, penso, escorrido pela cadeira, cofiando uma barbicha com ar de quem se mantinha longe dali. De fato, não estava achando graça naquele “Grito de carnaval” mixo de interior. A moça, entre curiosa e encabulada, venceu a si própria no medo de levar um fora, talvez fosse algum tipo arredio, irritadiço e não lhe entendesse a simples gentileza de ser cordial com um visitante. Talvez, fosse um personagem casmurro, ensimesmado, saído do livro que lera para estudo dirigido no colégio. Ensaiou o que diria, e foi.

– O que faz um moço tão bonito, mas tão sozinho, com esse ar de escritor de romances?

– Obrigado pelo escritor, mas, na verdade não sei dançar. Vim a convite de um amigo, ele é daqui, conhece todas as moças, dança com todas, já até me apresentou algumas, mas eu fiquei por aqui, não sei dançar – respondeu o rapaz, em tom de nota oficial, aluindo-se na cadeira como quem se recobra de um torpor e estirando o braço para beber um gole de cerveja quente, gesto mecânico de timidez.

– Ninguém aqui sabe dançar e nem há o que dançar, se você notou, as pessoas ficam dando voltas pelo salão e é isto o carnaval daqui.

Pego de surpresa, o rapaz, de fato um personagem lento para radiografar as situações, passou coisa de um minuto sem ação e, finalmente, acordou para alguns protocolos sociais. Levantou-se, “muito prazer, sente-se, aceita cerveja?” A moça se sentou, um garçom passava, o rapaz pediu uma garrafa nova e mais um copo. Explicou-se, mais uma vez. Aceitara o convite de um colega de faculdade... No dia seguinte, um churrasco de aniversário numa fazenda.

A conversa não rendera, o rapaz tinha ar triste. A moça arriscou uma tentativa de não voltar sem graça para junto da turma, coisa mais sem graça, abordar um rapaz e ele não dar a mínima. Seria gay? Pensou.

– Oh, Rose, como eu disse, eu sou um pé de chumbo, mas, vamos, então, dar uma volta pela pista?

– Ora, se vamos! – Ela respondeu, no íntimo, com alívio, mas já avaliando o inócuo resultado para o lampejo que tivera. Namoro descartado, talvez amizade.

Literalmente, rodaram pela pista do modesto clube de festas da cidadezinha. Puseram-se a conversar, mas a conversa se tornava inútil toda vez que passavam em frente do conjunto, até parecia que o baterista carregava mais no seu entusiasmo. De qualquer modo, o gelo já fora quebrado e ele já se sentia amorosamente aceito, quando uma mão entrelaçou os seus dedos, o que lhe trouxe um extraordinário bem estar.

Rodaram e rodaram pela pista, até que a banda concluiu uma seleção de músicas e anunciou um breve intervalo. O clarão das luzes trouxe ao rapaz uma sensação intimidatória, de novo o embaraço de não saber o que fazer.

Todavia, deixou para a moça a iniciativa de desfazer o laço das mãos, coisa que ela não fez, ao contrário, assim se manteve até que chegassem à mesa, onde foram recebidos com regozijos e muita sede. Os garçons aceleravam o passo para anotar os pedidos de cerveja gelada e foi também o tempo para as moças se juntarem, a pausa era também para os homens irem ao toalete “tirar a água do joelho” e as moças irem “retocar a maquiagem”. Foi, igualmente, a oportunidade para Roberto, o colega de faculdade, fazer um elogio ao seu convidado:

– Legal, cara! Que bom que você já se deu bem. Rose está sem namorado e é uma das garotas mais disputadas por aqui.

– Nada disso –, corrigiu, e fez uma previsão: acho que vamos ficar amigos.

– Relaxa. Seja o que for, tranquilo. Aqui é tudo gente boa.

A banda recolocou a alegria no mesmo lugar e, de novo, a gritaria:

– Fuscão preto! Você é feito de aço...! Também aprendeu a matar!

– Não repare, Ricardo – disse Rose, desculpando-se –, o pessoal daqui é chegado a uma breguice.

– O Brasil todo – contemporizou Ricardo, já não se importando mais se ele e a moça chamavam a atenção dos curiosos. Aliás, numa rápida conferida, verificou que isto não acontecia. Mais à vontade, Rose avançou uma casa no jogo e sondou se ele estaria disposto a atendê-la num detalhe:

– Ricardo, posso pedir uma coisa?

– Claro! – assegurou, sem fazer ideia do que fosse.

– Enquanto você estiver por aqui, você tira a aliança?

Pego de surpresa, o rapaz, que já não sabia dançar, perdeu completamente o rebolado. Demorou, mas puxou lá do fundo tirocínio. Ia tirar a aliança, quando ela o interrompeu com um leve puxão:

– Agora, não

E, artificialmente, se penitenciou:

– Ai, por favor, me desculpa! Esquece! Como eu sou inconveniente!

Vendo-o atarantado, a moça buscou uma saída:

– Vamos dar uma volta?

– Vamos sim, está mesmo muito quente.

Andaram em silêncio por uma calçada e se afastaram. O som da banda foi minguando, era como se alguém fosse baixando o volume. Sentaram-se num banco de praça. A lua já havia mudado de hemisfério e o ar frescor da madrugada esfriou as cabeças. Desta feita, foi ele pedir a mão da moça. Ela acedeu e reclinou a cabeça sobre o ombro dele. Ele, tocado por um impulso, puxou-a para si e se calaram num longo e caloroso beijo.

No dia seguinte, toda a cidadezinha acordou tarde, tarde para os padrões locais, um respeitável polo agrícola e também bacia leiteira. As vacas, ora! Não têm noção de que num carnaval mais se bebe é cerveja.

No churrasco, mesmo mantendo uma solene discrição, para os dois era como se a população já comentasse o surgimento de um novo namoro. Até o sino da igreja, parecia dobrar em nome de um suposto novo noivado. E é claro que as pessoas notaram que Ricardo não tinha aliança no dedo, portanto, descomprometido. Ela, no entanto, não mais estava sob a licença de um baile de carnaval. Mas, mesmo em pleno meio-dia e às vistas de todos, não conseguia esconder o quanto estava contente, pois, de fato, gostara dele. Ele, também. Mas, era todo embaraço.

A tarde seguiu descontraída. À noite, ainda tiveram um encontro, mas para que o silêncio se apresentasse com muito peso. Quase pêsames. Era como se uma vida ainda por ser sonhada morresse ali, e sem esperança. Abraçaram-se quase ao ponto de uma fusão xifópaga. Mas, ela arredou os lábios. E ele, não insistiu. Lacrimejaram.

Chegada a tarde de quarta-feira de cinzas, veio a inevitável despedida. Publicamente, os dois aparentaram não sentir o que estavam sentindo e todos os amigos que se abraçavam num adeus pareciam acreditar que o ocorrido entre os dois tinha sido apenas uma dessas coisas que o vento leva, tipo amor de carnaval. À sua vez de se despedir, Rose o chamou de lado, tomou-lhe as mãos nas suas e ficou acariciando-as, como uma cigana a ler destinos. O sentimento de perda dificultou a voz, que saiu num sussurro:

– Tenho outro pedido a lhe fazer.

– Pois, faça!

– Diga à sua esposa que nunca o deixe; que você é uma pessoa maravilhosa; que tenha paciência você; que as crises passam.

Abraçaram-se, mais uma vez, carinhosamente.

**************************

O carro pegou a estrada.

O recado jamais foi dado.

Tempos depois, chegou para Ricardo uma carta. A esposa é que tinha ido ao escaninho. Fingiu não notar que era para o marido e abriu-a. Tinha apenas uma foto de um casal com dois filhos, bem vestidos e em pose para álbum de família. Atrás, escrita em caligrafia desenhada, uma frase como que tirada de algum oráculo:

“O tempo e o silêncio do tempo falam por meio dos afetos construídos”.

– Uma carta de remetente estranho. Só depois de aberta é que notei que é algo muito pessoal, para você.

Ricardo pegou o envelope, virou-o para verificar o “Remetente”. Um frio lhe percorreu a espinha. Pausa. Dava para ouvir o ponteiro dos segundos. Surgiu, enfim, uma hipótese plausível:

– Deve ser mais uma instituição de caridade pedindo ajuda.

E juntou o envelope com os demais com os boletos de contas a pagar.

A esposa, porém, o alfinetou com uma farpa quase sutil:

– Com certeza, eu vi. É de uma família bem pobrezinha...

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