Luiz Martins da Silva –
Misto de encanto e decepção. Pode algo ser assim? Pois, foi.
Eu tinha de onze para doze anos quando o meu pai chegou mais cedo em casa e disse para a minha mãe se arrumar e eu, também. Íamos conhecer a televisão. Como assim? Sim, fôramos convidados e, convidados especiais. Seríamos somente nós, o casal e o menino ‘que está no colégio’, questão social, não entendi bem, não seria uma seção para muita gente. E, no conforme, lá, fomos, à casa do prefeito.
No caminho, minha mãe implicava, pelo menos pela décima vez: “Que arrumação é essa? Aí, tem coisa!”
– Tá bem, mulher – falou o meu pai, num tom que iria abrir o jogo. “Deve ser porque lá em casa somos sete eleitores e, no ano que vem, na data das eleições, oito”.
– Tá vendo! – implicou, de novo, a minha mãe.
– Que mal tem nisto? O homem só quer ser gentil com a gente, ele disse que é uma maneira de receber bem uma família de fora que veio morar aqui, disse que achava bom a gente conhecer logo o prefeito.
– Já vi todo tipo de presepada de político, sapato, dentadura, vale de compras... Mas, esta de cativar voto mostrando televisão...!
E por mais que o meu pai pedisse – “Não vamos chegar brigando à casa dos outros!” –, não adiantou. Minha mãe fez birra até chegar lá. Ora, que perda de tempo, veja se isso era maneira, ir de noite à casa de desconhecidos, casa de gente rica, cheias de rapapés e cerimônias.
De minha parte, estava curioso e já possuidor de um certo orgulho, na escola vários meninos e meninas se gabavam de ter televisão em casa, uma mentira, certamente. Pelo que o meu pai contava, a única casa da cidade que tinha televisão era a do prefeito.
Eu já conhecia as virações do meu pai e desde cedo eu o compreendi. “Ter filhos em idade de trabalhar e não ter emprego pra eles”. Vez por outra, eu até me envergonhava, aparecendo uma chance era ele a pedir: “Arranje uma colocação para um filho meu!”. E tome a falar de ‘conhecimentos’ dos rapazes: um tinha experiência de balconista das Casas Pernambucanas; um outro, era fotógrafo com experiência; um terceiro, sabia ler, escrever, contar... Àquela noite, porém, o meu interesse estava garantido, ia conhecer a televisão. Afinal, ela fora inventada [inaugurada no Brasil] em 1950 e era um atraso, dez anos depois, a gente ser que nem os matutos que acreditavam existir ‘um hominho dentro do rádio’ e, ‘agora’, um cinema dentro de uma caixa.
Pouco antes de chegarmos e tocarmos a campainha, minha mãe ainda se queixou: “Tivesse avisado antes, tinha lavado e passado uma roupa boa”. Ora, se aquilo era coisa que se fizesse, chegar na casa de gente rica parecendo uma mendiga. “Ele convidou, eu não ia fazer uma desfeita” – defendia-se meu pai.
O prefeito abriu a porta e fez um escarcéu, nos tratou como se fôssemos, de fato, pessoas muito distintas. “Sejam muito bem vindos! A casa é de vocês, vamos entrar, fiquem à vontade...”. E a mulher do prefeito: “Muito prazer, vão se sentando, já vou providenciar um lanche para nós”. Um pouco mais ao fundo da sala de visitas (nunca vira tantos móveis bonitos!), uma jovem senhora, com uniforme de mescla azulada, rendados brancos e mãos para trás aguardava os comandos: “Cidinha, pode coar o café, aliás, traga antes um suco de laranja para os nossos convidados”.
De minha parte, mal ouvi o que conversavam, o que preparavam, arregalei os olhos para o “aparelho de televisão”. Estava desligado. Não fosse a tela, parecia um móvel qualquer, uma espécie de cômoda, console, não sei bem como é que se chamava aquele tipo de objeto, mas já sabia se tratar de um “eletrodoméstico”. A verdade é que eu já lera uma reportagem, colorida, na revista O Cruzeiro, muito bem ilustrada sobre aquele ‘milagre da tecnologia’.
A mulher do prefeito convidou minha mãe para conhecer a casa e, por pouco, não se confirmou uma desconfiança dela: a madame estaria precisando de mais uma empregada. Não era, eles precisavam mesmo era de mais eleitores.
Eu fiquei sozinho na sala, afundado num sofá, tão grande que as minhas pernas tinham de ficar esticadas e os pés não alcançavam o assoalho, achei tudo muito bonito, mosaicos de desenhos e cores lindíssimos. Em cima de uma mesa de centro com tampo de vidros vários livros e revistas, mas não mexi em nada, não se devia fazer isto, a menos que oferecessem. E, enquanto eu aguardava os protocolos, a senhora com farda de mescla chegou com um copaço de suco de laranja, bem geladinho.
O prefeito, coisa estranha, chamou o meu pai para ir com ele ao quintal. Mas, logo em seguida, entendi porquê. Vieram me chamar também, era para ver a torre da televisão, ou melhor, a “antena”. O prefeito explicou a mão de obra que dera, quantos homens haviam trabalhado na obra, parece que até um engenheiro viera supervisionar, o detalhe é que o município não era coberto pelas micro-ondas, algo assim, então, para pegar o sinal que vinha da capital era preciso toda aquela edificação, a torre era ‘chumbada’ sobre uma sapata de cimento para suportar ventania e não balançar muito, pois isto também afetava a “recepção”. Aquilo parecia mesmo era uma torre de extração de petróleo, daquelas que eu sabia, do livro de Geografia.
Para mim, o que atrapalhava a recepção era que eu imaginava que íamos chegar e a TV já estar ligada, quem sabe, ‘passando’ algum um jogo de futebol. No cinema, no Canal 100, a gente já conhecia as maravilhas do cinejornal, mostrando em detalhes as jogadas e os dribles dos maiores craques, Garrincha e Pelé.
Finalmente, todos na sala, como convinha e eu tanto esperava. Servido o café com pão de queijo e biscoitinhos, a televisão foi ligada. O prefeito girou o botão, como se fosse cortar a fita de alguma obra a ser inaugurada. De início, um ‘toin..nn..nnn’ e... Apareceu a imagem. Mas, que decepção! As cenas pareciam que tinham sido filmadas sob uma nevasca e o som era irritante, só com muito esforço se entendiam as falas e as músicas eram muito lentas, muito tristes, um repertório de canções do tipo valsas... Eu parei de contar quantas vezes o prefeito se desculpava em relação ao chiado do aparelho:
– Que pena, ontem estava tão bem!
A TV não estava bem. E, os cantores, todos de terno, muito quietos; as cantoras, também, numas toadas muito paradas. Em nada lembravam as ‘loucuras’ do twist, a nova onda que ‘varria o mundo’, segundo as matérias de O Cruzeiro. O volume tinha de ser baixinho, porque se o aumentasse, o ruído também crescia e atrapalhava a conversa.
Para nosso consolo, o prefeito não pediu votos; a madame não era pernóstica, nem arrogante. Meu pai não pediu “colocação” para os filhos e minha mãe, toda alegre e falante, parecia outra pessoa, falava orgulhosa do que sabia fazer: bordado, croché, tricô, costura para homem e mulher, só não falou de culinária, pois nisto ela não era mesmo muito prendada, lá em casa a gente sabia. Permaneci um tanto deslocado e sem assunto. Se o prefeito tinha filhos, não apareceram. Até que a senhora da casa, muito educada, sugeriu que eu ficasse mais perto da televisão para usufruir melhor da programação. Fiquei, mas, confesso, um tanto decepcionado. Todavia, não o demonstrei. E perguntas a este respeito não faltaram:
– Tá gostando? – a todo momento queriam saber. Ao que eu confirmava, com muita ênfase: “Sim, estou apreciando bastante!”.
A volta para casa foi meio silenciosa. O meu pai ressaltava as qualidades do prefeito, a hospitalidade da primeira-dama do município etc e tal. Minha mãe, não se queixava, mas também não demonstrou qualquer entusiasmo. Só em um momento, ela arriscou um negativismo.
– Isso é assim, daqui a alguns meses, eles não vão reconhecer a gente no meio da rua.
Previsão errada. Eu morei naquela cidade até vir continuar os meus estudos na Capital. Meus pais sempre foram bem tratados e bem reconhecidos por eles. Havia o interesse eleitoreiro, claro que havia, mas não era só por isto, eram, de fato, “distintos”. A televisão evoluiu muito e, dez anos depois, ainda continuava sendo um móvel inamovível, muito embora “a cores”. Ainda fazia o ‘toin...’ na hora de ligar. A sintonia já não precisava de uma torre de petróleo, mas demandava um esforço chato de se procurar uma posição adequada para a antena, com a mesma inquietação com que minha mãe manuseava agulhas de tricô. O Brasil “sagrara-se” tricampeão do mundo. Pelé ainda era o rei. Mas, o país e várias outras nações da América Latina foram mergulhados em ditaduras e regimes políticos perversos, todos eles com muitos presos políticos. Pelo menos os cantores e as cantoras eram mais movimentados. O twist já era. Os Beatles, sim, eram demais! Para sempre o serão. Roberto Carlos mandava ‘tudo pro inferno’. Graças a Deus, nem todos foram.