Luiz Martins da Silva –
Esta é uma história de um tempo em que havia espantos. E em que a gente pequena se arrepiava ao ouvi-los.
Boca a boca, até se sabia de um casal que se transmutava. Morava numa rua acima da nossa. A prova? Ele e ela eram muito amarelos, a certeza de gastarem muita energia em noitadas lobisoméricas.
De praxe, não andar pela mesma calçada da casa deles. Isto se aprendia na hora da contação, as rodas de conversa antes de sermos chamados para dentro, se lavar, comer alguma coisa e ir dormir. Dormir? Difícil. E mesmo sono pegado, desassossego, a gente sonhava com eles, virando bichos.
Havia um homem que dizia para quem quisesse ouvir, que era só chamarem e ele serviria de testemunha. Um tal Felisberto. Uma vez, vendo-o passar ao longe, corri e o alcancei. Quis saber da própria voz dele como era. Mesmo eu sendo ainda uma criança, não se fez de rogado. Não somente confirmou, como detalhou:
– Eu voltava para casa, umas onze e meia da noite. A terrível criatura tinha uma cabeleira, de cobrir todo o corpo, mistura de juba e crina. Os olhos, vermelhos, arregalados e brilhantes, feito tochas na escuridão.
– Então, o senhor foi atacado pela fera do outro mundo?
– Sim, mas eu que não sou besta, já havia me instruído. Nada de tiro, nem arma branca, nem força bruta. Madeira, sim, qualquer graveto em cruz tem mais força.
– Então, é só cruzar paus em cruz?
– Não é simples, assim. Eles não suportam a cruz, mas, de qualquer maneira, desviam as vistas e vêm derreando em direção da gente, esturrando e, num descuido, atacam e devoram o cristão. A pessoa não pode tropeçar, cair, dar as costas para eles. Se for do tipo que se mija de medo e sai correndo, não escapa, ninguém tem carreira para ganhar deles.
– Então, é difícil alguém sair vivo?
– Se estiver bem prevenido, se safa. Saber as rezas poderosas para a ocasião. Um cre’m-deus-padre; a oração do anjo da guarda; três pelo-sinal; e três sinal-da-cruz.
– E manter os pedaços de madeira em cruz?
– Sim e estar pronto para fincar um deles no bicho. O que mata é madeira. Já falei, bala e faca, bobagem.
Ele me deu a receita, mas, fiquei matutando. Mesmo sabendo das simpatias, eu não pretendia enfrentar lobisomem algum. E de qualquer maneira, era pouco provável que eu viesse a estar, às onze e meia da noite, no lugar onde as feras mal assombradas apareciam. Era um lugar pavoroso, um despenhado que dava para uma pedreira onde estouravam dinamite para extrair pedras a serem cortadas para calçamento de ruas. De dia, trabalho duro, de pessoas muito pobres, para ganhar o sustento. De noite, lugar, diziam, de vibrações muito pesadas. De qualquer maneira, os meninos iam adquirindo sabedoria acerca dos lobisomens, das estripulias destes e de como se podia neutralizar a valentia feiticeira deles.
O pior, e isto eu tinha certeza, era a gente, ainda praticamente uma criança, ficar sabendo das orientações malignas para uma pessoa se transformar naquelas entidades de horror. A receita eu vou contar, mas, somente para vocês ficarem sabendo como é que pessoas do mal tomam parte com ele. O que elas ganhavam em troca, não me lembro e bem e até me dá calafrio em pensar que alguém pode trocar uma vida benta numa sina maldita. Parece que em eles se virando para o lado do pé quadrado obtêm facilidades no mundo do crime, mesmo cientes de que podem ir direto para o inferno.
Feita a advertência, conto como cresci apavorado com essa história, de todas a que mais me atemorizou ante a possibilidade de que, por conta de algum deslize moral, resvalasse para os caminhos que sugam as pessoas para os abismos do diabo e de suas criaturas medonhas, escravas dele nesta parte do mundo e na outra também.
Finalmente, depois que o medo já não me perturba o sono e que me garanto na confiança de que a prática do bem é a melhor proteção do cristão, posso, tranquilamente, rememorar esta, que é uma das besteiras mais insanas que passavam para a gente, talvez como forma de educar por meio do medo.
Para se iniciar na arte de ser lobisomem, é preciso proceder da seguinte maneira: numa passagem de quinta para sexta-feira santas, ou seja, perto da meia-noite, ir a um espojeiro de cavalo e esfregar as costas no chão, da maneira como eles fazem tentando aliviar a coceira dos carrapatos. Espojeiro, saibam, é aquele piseiro em roda que o animal deixa no terreno batido. O indivíduo tem de se espojar, à meia-noite, na convicção de que passará a ter o poder de, quando a tentação vier, virar essa mistura de lobo e homem ou de loba e mulher. Ganham, assim, superpoderes para a prática de maldades, entre elas, a de devorar os que andam por lugares amaldiçoados. Em desvantagem, no dia seguinte estão sem energia, o sintoma da amarelidão, as olheiras fundas, o esmorecimento, a vista baça.
Ainda bem que ainda há orações e boas disposições para os caminhos do bem. Em todo caso, recomendo, se, de qualquer maneira, tiverem que passar de noite por lugares sinistros, lembrem-se de ter consigo dois pedaços de pau. De preferência, bem apontados, para a mira certeira no coração dos bichos. O fato é que pessoas do mal continuam existindo, metamorfoseando-se e podendo atacar.
Lobisomens e lobismulheres estão fora de moda e já não povoam as sombras das noites mal-assombradas das crianças, hoje, muito mais presas à violência dos games e a outros tipos de besteiras que assolam, por exemplo, as redes sociais. Mas, nunca é demais prevenir: o mal não compensa, mesmo que acene com tentadoras recompensas.