"A vida é de quem se atreve a viver".


Luiz Martins: “Que venha a vacina, pois, os riscos de se pegar a Covid-10 tornaram-se banais. Torrar a vida numa fogueira, numa festa junina, por exemplo, tornou-se uma forma extrema e irracional de negar a morte”.
A revogação do luto e o desperdício da vida como fuga

Luiz Martins da Silva –

Neste 2020 o Brasil se tornou o epicentro da pandemia do novo coronavírus e também o expoente de contradições típicas do momento e que encontraram na reconhecida “polarização” política um sintoma de expressivo significado. Paralelamente, sinalizações  deploráveis emergem neste cenário atípico de isolamento, distanciamento, condutas sanitárias e de estranhas rebeldias em relação aos antigo e novo normal, desenhando-se a hipótese de que esteja ocorrendo um surto de anomias: comportamentos desviantes em relação à lei, à ordem e aos costumes, mas, sobretudo, em face das lógicas convencionais.

A insensibilidade para com a morte e para com o sofrimento alheio é, desde sempre, um aspecto preocupante, nas ciências humanas e sociais e nas clínicas de distúrbios. Muito se tem estudado e evoluído em relação aos transtornos obsessivos que levam pessoas a extremas situações de escravidão para com limpeza, segurança e circunscrição a espaços de locomoção. Mas, pouco se tem avançado na compreensão de patologias e sociopatias que implicam a elisão completa de cuidados para consigo, com a saúde, com a segurança de si e dos outros, desdenhando-se da real possibilidade de punições e padecimentos.

Notaram que algumas pessoas, personalidade e grupos irrompem as expectativas, assumindo condutas no reverso das recomendações? Para além do negacionismo de uma grande ameaça, partem para a afronta pública dos apelos feitos em benefício de todos. E se um dos principais clamores é para se evitarem aglomerações, promovem encontros, manifestações e, como se tem visto, festas que, com certeza, atrairão centenas e até milhares de pessoas, ávidas por uma chance de happening e extravasamentos exibicionistas.

Sem máscara, o próprio presidente da República arrebata-se em performance e desvio de função, galopando cavalo da polícia montada, para o gáudio de populares. Em outros contextos, jovens se excedem em farras, dançando, bebendo e se beijando, ou seja, se lixando. Ocorreu, por exemplo, no último fim de semana em barcos de luxo no Lago Paranoá, em Brasília.

Nos séculos XVIII e XIX, antropólogos registraram um fenômeno curioso, o potlatch, que consistia no suposto esbanjamento e até no desperdício de bens como demonstração de desapego, mas também de riqueza e poder inesgotáveis. Em momentos de euforia, chefes tribais distribuíam presentes e, como ágape, mandavam reunir um monte de coisas raras e caras para serem queimadas. Não raro sabemos de exibicionismos do tipo acender charutos com notas de 100 dólares. Por vezes, havia competições entre caciques para se saber quem era capaz de maior despropósito. Consta que governos norte-americanos e canadenses chegaram a proibir a prática do potlatch em seus territórios, por considerá-los irracionais.

No contexto da pandemia do Covid-19, que nasceu na China e está dando uma volta completa ao mundo e recomeçando por lá, não poupando sequer os países que são ilhas ou arquipélagos, o contágio ganhou dimensão exponencial no Brasil, entre outros fatores, por negligência do Estado, leia-se do governo federal, e por atavismos culturais. Somos, supostamente, um povo gregário e que leva o contato físico ao intimismo de abraços e beijinhos e à intensa proximidade nas danças e demais festejos: particulares, folclóricos, religiosos, esportivos, cívicos e... sabe-se lá qual mais. Festas juninas seguem até agosto, quando há natal e carnaval fora de época. No comércio, a Black Friday é em qualquer dia e, por vezes, em toda a semana e já vi uma delas se arrastar por todo um mês. Vivemos nos parques, praças, pracinhas, salões de festas, clubes, piscinas, praias, botecos e estádios de futebol.

A preocupação, aqui, já nem recai mais sobre os negacionismos governamentais, já comentados por aqui e, por fim, até motivo de chacota. Com o surgimento de uma nuvem de gafanhotos na fronteira da Argentina com o Brasil, circulou uma fotomontagem de Bolsonaro dizendo que eram apenas algumas joaninhas, alusão sardônica a qualificação dada pelo nosso chefe de Estado em pronunciamento oficial e em rede de rádio e televisão, tranquilizando quanto ao novo coronavírus não passar de uma gripezinha, nada a atingir, por exemplo, uma pessoa atlética, como ele. Atleta, talvez em estande de tiro com arma pesada, como apareceu na mídia, dias atrás.

À medida que o novo coronavírus se expande pelo Brasil e passa a atingir nações indígenas as mais isoladas, o resto do mundo tem medo do Brasil, a ponto de governos estrangeiros estarem interditando as suas fronteiras a entrada de brasileiros.

Um correspondente brasileiro de uma tevê, situado em Nova York, contou que até à atual pandemia, apresentar-se como brasileiro lá fora era ser objeto de alguma referência simpática: o turismo, o povo, a música, o futebol, enfim... Agora, contou, se alguém sabe da proximidade de um brasileiro vem logo uma indagação adversativa: “Mas você esteve recentemente no Brasil?”.

Na conjuntura de hoje, de uns 60 mil óbitos desde que a população foi advertida do risco de vida e de uma notificação oficial em torno de 1,3 milhão de pessoas, o Brasil pode, paradoxalmente, se beneficiar do desleixo para com a altíssima competência do Covid-19 em se espalhar. Qualquer vacina que dê certo aqui será difundida no mundo com um diferencial publicitário: se deu certo no Brasil, onde as pessoas zombam da doença; onde ministro paga multa por não usar máscara; e onde o Ministério Público tem de obrigar o Presidente da República a colocar a sua, é porque o antídoto estará garantido.

E, aqui, estamos nós. Reféns de todos os fatores possíveis e imaginários e conspirando para o alastramento de um vírus; com gente do povo e do poder político brincando com a morte, numa espécie de selvagem potlatch sanitário.

Estamos entregues à sorte, mas, por favor, não abusemos tanto, pois a velocidade do vírus pode ser bem mais extravagante do que todo esse rali internacional para saber quem chegará à frente com bilhões de dozes, a serem testadas primeiramente no Brasil, país onde a pandemia encontrou um governo disposto a privatizar tudo e com o Sistema Único de Saúde em avançado estado de destruição, mas, agora, de olho numa luzinha que aponta no fim de um longo túnel.

Mesmo que o Brasil fosse um país rico a ponto de torrar fortunas, convenhamos: teria sido muito mais econômico se a prevenção tivesse funcionado; se tantos bilhões não tivessem escorrido para as indústrias de respiradores e outros bens raros e caros.

Aqui estamos, com um reitor da Universidade Federal de Pelotas argumentando que seria menos danoso para a Economia arcar-se com um lockdown completo e nacional por uns 15 dias, pelo menos, e se deter a fúria do Covid-19, do que insistir em reabrir shoppings, clubes, salões de beleza, feiras etc. E mais, avisou que sai mais caro abrir comércio e serviços e voltar atrás do que não abrir nada. Ocorre, porém, que há um outro fator a se levar em conta: a perda de sentido do luto e da própria vida. Estamos numa fase em que, na falta de uma política coordenada e com um líder carismático na contramão, governadores e prefeitos não aguentam mais as pressões por um “relaxamento”.

Que venha a vacina, pois, os riscos de se pegar a Covid-10 tornaram-se banais. Torrar a vida numa fogueira, numa festa junina, por exemplo, tornou-se uma forma extrema e irracional de negar a morte. Está claro que existe um transtorno que potencializa a pandemia: divertir-se, abstraindo o sentido da morte e do luto. É óbvio que isto é errado. O óbvio, porém, virou um bem desprezível.

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