Romário Schettino –
O que faz um ecossociólogo no Planalto Central do Brasil? Para responder a essa e a muitas outras questões relacionadas ao meio ambiente, à preservação e recuperação da natureza e à sobrevivência da humanidade entrevistei o gaúcho Eugenio Giovenardi (87 anos).
A experiência transmitida por Eugênio em seu livro Reencontro – O que aprendi da natureza, e em outros títulos publicados, é útil para todas as pessoas interessadas no trato com a vida em seu sentido mais amplo possível. Biodiversidade para ele não é apenas catalogar a riqueza biológica da natureza, é colocá-la na relação direta com o que chama de biocomunidade, ou seja, a vida harmoniosa que deve existir entre os mundos vegetal e animal, o homem e a água, elo vital para a sobrevivência de todas as espécies.
Nesse seu livro, Eugênio conta que “estamos vivendo, segundo opinião de especialistas internacionais em biodiversidade, a sexta grande extinção em massa de espécies vegetais e animais”. Segundo ele, “a sexta extinção é, porém, a primeira de grande proporção causada por uma única espécie: a humana. Em pouco menos de duas gerações, foi reduzida pela metade a população de milhares de mamíferos, répteis, anfíbios e peixes”.
Seus alertas são realistas e baseados em estudos realizados ao longo de 40 anos dedicados ao assunto. Interessados no livro devem escrever para o e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. que ele envia pelo correio.
A seguir, a íntegra da entrevista:
Seu livro “Reencontro - O que aprendi da natureza”, (Editora Kelps, 2017), revela a sua rica experiência na recuperação da vida integrada ao que você chama de biocomunidade. Como o senhor chegou à necessidade de estudar esse fenômeno e por quê?
Eugennio Giovenardi – Quando me transferi para Brasília, em 1972, vindo do Sul, não conhecia o Cerrado, um bioma que se revelou extraordinário por duas razões: o silêncio planetário e a vegetação sofrida. As duas estações bem definidas, meses de chuva e meses de estiagem me induziram a conhecer melhor o ecossistema em que vinha viver. Adquiri, em 1974, uma área de 70ha no sul do DF, sujeita a fogo, a pisoteio de gado magro, a lenhadores e carvoeiros. As primeiras tentativas de exploração do solo, por ignorá-lo, se tornaram infrutíferas. Percebi que devia, antes de tudo, conhecer o Cerrado, o bioma, o ecossistema.
As primeiras chuvas lavaram o solo. Li, no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, que os romanos produziram trigo na Tunísia, há cinco mil anos, captando e detendo em pequenas barragens, na forma de arcos convexos, a água da chuva. Fiz isso em todas as grotas e canais de escoamento das águas pluviais. Em cinco períodos de chuvas, retidas nas barragens, a paisagem vegetal mudou e as nascentes rebrotaram. Conto isto em meu livrinho O Retorno das Águas.
Decidi, então, transformar esta área em reserva vegetal e animal. Conversei com vizinhos para evitar fogo, caçar e cortar árvores. Ao longo de 40 anos, a paisagem se transformou. A biodiversidade se expandiu, o ecossistema está em franca regeneração. Pássaros e animais retornaram a seu habitat original. Tornei-me, com o apoio de minha família, um hóspede deste refúgio que denominei Sítio das Neves.
O que é ecossociologia? Como se tornou um ecossociólogo?
E.G. –Ao longo dos anos, em permanente contato com as árvores, os pássaros, os animais de terra, a variedade inumerável de insetos que compõem a biodiversidade e a cadeia trófica – as vidas se alimentam de vidas – passei a observar as relações de todas as vidas do ecossistema entre si, as relações que elas tinham comigo e as que eu poderia ter com elas. Percebi a linguagem das árvores e o comportamento dos animais para com elas. Só o comportamento humano destoava. O ser humano quer decidir o que fazer com a natureza e dominá-la. Não sabe dialogar com o ecossistema.
A ecossociologia é a observação crítica das relações de convivência entre todos os seres vivos, interativos e interdependentes, que habitam a mesma casa, o mesmo bioma, o mesmo ecossistema.
Seu livro fala muito sobre a cooperação entre as árvores e os animais (ou o mundo vegetal e o animal com a essencial participação da água). Essa harmonia vital exige um equilíbrio ambiental que está cada vez mais ameaçado. Como resolver esse problema no mundo atual?
E.G. – A natureza, os diferentes biomas, os ecossistemas estão em permanente perda em razão do tempo, das mudanças constantes do clima e de sua função de alimentar todos os seres vivos. O sistema natural da sobrevivência das espécies determina uma graduação da atividade predatória dos seres vivos que possibilita constante regeneração biológica e reprodução de todas as espécies animais e vegetais. O equilíbrio se rompeu com expansão, a ocupação espacial do planeta e a ação equivocada do homo sapiens impondo à natureza e aos ecossistemas sua organização social, econômica e política, sem dar tempo à regeneração dos ecossistemas. Em outras palavras, a espécie humana tira dos ecossistemas mais do que eles podem dar. Um novo olhar sobre a natureza, melhor compreensão e conhecimento dos ecossistemas sugerem, com urgência, substituir o modelo capitalista, ou que outras denominações lhe queiram dar, para a bioeconomia, uma economia que respeite a interação de todas as vidas. Melhor conhecimento da natureza, maior interação com os ecossistemas.
O instituto Earthwatch, durante debate na Sociedade Geográfica Real de Londres, chegou à conclusão de que as abelhas são os seres vivos mais importantes do mundo. A Corporação de Apicultura do Chile realizou um estudo em que foi determinado que as abelhas são o único ser vivo que não é portador de nenhum tipo de patógeno, independente de ser um fungo, vírus ou uma bactéria. O senhor conhece esse estudo? Concorda com ele?
E.G. – Impressionei-me com as informações veiculadas sobre o tema. Vi, no Jardin des Plantes, em Paris, um apiário universal para atrair abelhas melíferas [que produz mel] e não melíferas com a finalidade de conhecer a amplitude da função específica das abelhas no processo de regeneração e reprodução vegetal. Registram-se, no planeta, mais de 20 mil espécies de abelhas. Elas são responsáveis pela polinização do universo vegetal. As abelhas garantem a reprodução de todas as espécies vegetais. E são, ao mesmo tempo, alimento de milhões de pássaros.
O crescimento populacional é espantoso. Somos cerca de sete bilhões de seres humanos no Planeta, em poucos anos chegaremos a mais de 10 bilhões. Como resolver o impasse entre esse crescimento, a geração de lixos, destruição da natureza e consumo desenfreado?
E.G. – A evolução cerebral e orgânica da espécie humana lhe propiciou possibilidades especiais para se adaptar a diferentes climas, buscar entre as espécies vivas o alimento e compreender o mistério da reprodução do milagre da vida. Deu-lhe também a capacidade de organizar suas relações com o mundo exterior, com os diferentes ecossistemas e com a própria espécie com distintas formas culturais e idiomas específicos. O equívoco da espécie humana, relativamente às demais espécies vivas, se manifestou na concepção, mais e mais difundida, de que pode dominar a natureza, apropriar-se do espaço físico, e estabelecer a ordem do universo. O critério de dominação que preside a organização social da espécie humana se estabelece igualmente sobre as espécies vivas e sobre a própria espécie.
O planeta é limitado em espaço e em alimentos potenciais para a sobrevivência igualitária das espécies vivias. O desmatamento operado em mais de três quartos do planeta, as mudanças climáticas permanentes, os regimes irregulares de chuvas, a escassez de água e alimentos para mais de dois bilhões de pessoas, a desigualdade consciente mantida para salvar fortunas dos mais fortes indicam que a organização social da espécie humana terá que ser repensada para harmonizar sua permanência no planeta.
A escritora suíça Susan George, em seu livro “O relatório Lugano” (Editora Boitempo), critica o neoliberalismo e atribui a essa ideologia a falta de interesse pelo adequado planejamento familiar. A dinâmica do mercado explorador da mão-de-obra barata e o desprezo pelas vidas humanas, especialmente a dos mais pobres, é também outro fator do desinteresse. Qual sua opinião sobre essa tese?
E.G. – Há generalizada convicção em amplos setores acadêmicos, instituições de pesquisas comportamentais no campo da biologia, psicologia, sociologia, antropologia e economia de que a organização social do homo sapiens sofrerá profundas modificações nas próximas cinco décadas. Será uma imposição das dificuldades de sobrevivência da espécie humana criadas pelo modelo econômico vigente. Denomine-se capitalismo ou neoliberalismo.
O senhor acredita que as doenças modernas (Covid-19, por exemplo) são frutos do desequilíbrio da natureza? Por que isso acontece?
E.G. – Não tenho dúvidas sobre as reações das espécies vivas, dado que todas defendem a própria vida e buscam sua reprodução. Vírus e bactérias são seres vivos. Diante de ameaças ou riscos de extinção, todos os seres vivos buscam alimentos adequados e espaço para se multiplicarem.
Então o vírus é mesmo um ser vivo?
E.G. – O vírus é uma força viva que precisa de outro ser vivo para se reproduzir. Até nova definição biológica de vírus, tenho-o como um organismo vivo.
As variações climáticas são graves problemas. Chuvas torrenciais, secas bravas, aliadas à falta de planejamento dos órgãos responsáveis pelo meio-ambiente podem estar contribuindo para a aceleração do aparecimento de desastres urbanos e rurais? Como evita-los?
E.G. – Um novo olhar sobre os ecossistemas é necessário para melhorar os conhecimentos sobre o tempo e a forma de sua regeneração, para controlar o consumo de bens e o aumento da população humana e da população animal agregada (bilhões de animais domésticos de todas as espécies), e para estimular as comunidades locais protetoras do ambiente ecológico. Precisamos de um novo paradigma de atitudes e comportamentos para sobreviver às mudanças climáticas em curso.
Qual o papel da Anvisa na defesa da agricultura saudável?
E.G. – Os defensivos ou agrotóxicos são as vacinas contra as pragas vivas que destroem plantações. Resultado: tudo acaba na água e no ar. Ou seja, poluição invisível mas captada pelos organismos vivos. Usam-se mais de 400 venenos contra organismos vivos. O papel da Anvisa é atestar que o veneno é realmente eficaz. Algumas medidas de precaução são sugeridas ou impostas. Se o ecossistema vai na vala comum com a praga, quem sofre somos nós os seres vivos.
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Quem é Eugênio Giovenardi
Nascido no dia 28 de junho de 1934, o gaúcho Eugênio Giovenardi é filósofo, teólogo, sociólogo e escritor. Vive em Brasília desde 1972 e possui uma extensa carreira de formação intelectual.
Fez filosofia na Faculdade São Boaventura, Marau (RS). Teologia na Faculdade São Lourenço, Porto Alegre. É bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de Ijuí (RS), com especialização em sociologia do desenvolvimento.
Também tem especialização em economia do desenvolvimento pela Universidade de Loughborough, Inglaterra, 1972. Bolsista do Governo Francês, Paris, de 1967 a 1969, bolsista da Fundação Gulbenkian, Lisboa, de setembro a dezembro de 1969. Bolsista da FAO na Universidade Tecnológica de Loughbrough, Inglaterra, de 1971 a 1972.
Experiência profissional
Eugênio foi consultor do Banco Nordeste do Brasil, para treinamento de Agentes de Desenvolvimento Rural, de janeiro a abril 2003. Consultor do BID, de 2000 a 2001, para assuntos de geração de postos de trabalho e melhoria da renda. Consultor do PNUD (1995-2000) para assuntos de capacitação, educação e treinamento em assentamentos rurais da Reforma Agrária e Alfabetização de adultos junto ao Incra/Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Além disso, ocupou o cargo de consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1987 a 1994, e diretor de projetos agroindustriais rurais e de geração de oportunidades de trabalho remunerado na agricultura e em bairros marginais de Bogotá e cidades intermédias da Colômbia, países andinos e América Central.
Atuou como coordenador de Fomento Cooperativo do Banco Nacional de Crédito Cooperativo, em Brasília, de 1974 a 1987. Superintendente Nacional Adjunto da Superintendência Nacional de Cooperativismo do Ministério da Agricultura, 1985/1986. Consultor do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, 1973/75. Consultor de Projeto FAO/BRA para desenvolvimento de cooperativas, São Paulo, (1970-1971). Professor convidado da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro), para cursos de pós-graduação em cooperativismo (1984/1985) e professor convidado da Unisinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, para cursos de doutorado em cooperativismo. (1980-84).
Em Brasília, atuou também como professor de Sociologia Aplicada à Administração, na Universidade Ceub (1973) e foi professor de Sociologia Geral na Universidade UDF, de 1974 a 1975.
Durante trinta e cinco anos trabalhou com associações cooperativas, trabalhadores camponeses e urbanos, desenvolvendo pedagogias de aprendizagem participativa em processos produtivos integrados (produção, comercialização, agroindustrialização), geração de postos de trabalho não agrícola.
É autor da Metodologia de Desenvolvimento Empresarial Participativo para cooperativas com base em complexos econômicos da cadeia produtiva. Também participou da organização de grupos de interesse e empresas de serviços cooperativos.
Trabalhou também com modelos de gestão, multiplicadores, treinamento de agentes comunitários para a geração de empregos. É autor do método Capacitação Imersa – uma pedagogia da aprendizagem – para profissionais de orientação tecnológica a produtores rurais. Eugenio possui experiência em aplicação e difusão de sistemas simples e eficazes de controle da erosão, captação e retenção de águas da chuva e preservação de nascentes.
Trabalhos técnicos publicados:
Em espanhol
- Estruturas de Pobreza em el Agro. Por qué son pobres los campesinos? (PNUD/OIT), 1993, Bogotá. (esgotado).
- Metodologia del desarrollo empresarial participativo (2 volumes) - PNUD/OIT, 1993, Bogotá.
- Planificación Prospectiva (PNUD/OIT), Bogotá, 1993.
- Formas y tipos de integración empresarial (PNUD/OIT), Bogotá, 1993.
Em português
– Sistema ITOG (Investimento, Tecnologia, Organização e Gestão) de desenvolvimento empresarial (PNUD/INCRA), Brasília, 1996.
– Renda – Meta Focal – Indicador básico de investimento, (PNUD/INCRA), Brasília, 1996.
– Capacitação imersa – Uma pedagogia da aprendizagem (PNUD/INCRA), Brasília, 1996.
– Modelo de Gerência com Indicadores (PNUD/INCRA), Brasília, 1997.
Obras literárias
1 − O homem proibido (Os filhos do cardeal) - romance. Editora Paralelo 15, 1997 (Traduzido para o espanhol, publicado em Havana, Cuba, pela Editora José Martí, junho/2000 e para o finlandês, Editora LIKE, Helsinque, março/2001, e para o inglês, 2006, edição E-book).
2 – Versos Irregulares, Paralelo 15, 1998, Brasília.
3 – Em nome do sangue (romance) editora Movimento, 2002, Porto Alegre, ganhador do Prêmio Açorianos de Literatura, 2003. (traduzido para o finlandês, LIKE, Helsinki, 2005, Edição de Bolso, em finlandês, 2006).
4 – Ventos da Alma, Editora SER, 2003, Brasília.
5 – Solitários no Paraíso, Poema – Editora Movimento, Porto Alegre, 2004.
6 − A Saga de um Sítio – Crônicas – LGE, Brasília, DF, 2007.
7 − AS pedras de Roma, Romance, MaisQnada, Porto Alegre, 2009. Traduzido para o inglês: - The Stones of Rome, Novel, Kelps, 2019.
8 – Heliodora – Romance, Editora Francis, Brasília, DF, 2010.
9 – Silêncio – Romance intimista, Thesaurus, Brasília, DF, 2011.
10 – Sutilezas do Cotidiano – Crônicas – Kiron – 2012.
11 – As árvores falam – Crônicas, Editora Movimento, Porto Alegre, RS, 2012.
12 – O último pedestre – romance, Editora Kiron, Brasília, DF, 2013.
13 – Sutilezas do Cotidiano – Crônicas, Editora Kiron, Brasília, DF, 2013.
14 - No meio do caminho - Editora Movimento - 2014
15 - Ecossociologia – Ensaio sobre relações ser humano-natureza
16 – Ecologia – Prosperidade sem destruição dos ecossistemas.
17 – Reencontro – As lições da natureza, Editora Kelps, 2017.
18 – Anarquismo literário, Editora Kelps.
19 – Aldebarã e eu, KELPS, 2018
20 – A velhice do tempo – Ensaio – 2019/20
21 - Caliandra – Poesia – 2020 – Kelps -
22 – Os pobres do campo – - Como construir estruturas de riqueza no campo. Tomo Editora Porto Alegre, 2003
23 − O retorno das águas – Retenção de águas da chuva e preservação de nascentes. Editora SER, edição bilíngue, Brasília, 2005.
Títulos
- Acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal
- Sócio da Associação Nacional de Escritores, Brasília
- Acadêmico da Academia de Letras do Brasil
- Sócio do ICOMOS/Unesco.
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