Romário Schettino –
O novo livro de Leonardo Padura, Água por todos os lados (Boitempo), é, ao mesmo tempo, um depoimento pessoal sobre sua decisão de não ser só um escritor cubano, mas de ter optado por viver na ilha. O título é a definição geográfica de Cuba, desde sempre uma ilha. O livro é também um passeio sobre a história da literatura cubana, dos primórdios até os últimos anos.
Padura apresenta ao leitor as suas grandes paixões, o beisebol e a cultura cubana. Seu amor pelo local onde mora é comovente. Ele vive num bairro de Havana onde também viveram seus avós e seus pais.
“Sou um escritor cubano que vive e escreve em Cuba porque não posso e não quero ser outra coisa, porque (e sempre posso dizer que apesar dos mais diversos pesares) preciso de Cuba para viver e escrever”, afirma Padura.
E acrescenta: “Quando me perguntam por que vivo e escrevo em Cuba, tenho diversas respostas possíveis a oferecer. Prefiro, porém, a mais simples: porque sou cubano e tenho um alto senso do que esse pertencimento significa”.
É um livro pequeno, apenas 292 páginas, de leitura rápida, mas denso, cheio de informações e visões críticas da literatura cubana e do sistema socialista implantado com a revolução, como sempre faz em seus escritos.
É prazeroso acompanhar Padura pelas ruas de Havana, por lugares pouco comuns na propaganda turística. O Malecón é uma exceção, claro, quem pensa em Havana vê o muro que separa a terra do mar. De frente para o Malecón só se vê o mar; de costa, está a cidade e seus encantos, seus tipos humanos muito parecidos com os baianos, ou serão os cariocas?
Com destaque para a maneira como Padura descreve o seu processo de criação e como cria seus personagens. Assim, ele revela os locais e as tramas em que os personagens ganham vida, seus instrumentos de trabalho e suas inspirações: “Entre uma obsessão abstrata, quase filosófica, e o complicado processo de escrever um romance, há um longo período, cheio de obstáculos e desafios”, revela o escritor. Foi assim que ele concebeu e escreveu o seu mais famoso romance, O Homem que Amava os Cachorros, em que narra a história do assassino de León Trótsky, que viveu em seus últimos anos em Cuba. Nessa parte do livro há revelações curiosas que precisam ser lidas. Não convém contar aqui.
Virgílio Piñera
Neste livro, Padura dedica um longo capítulo a quem ele chama de o maior e mais importante escritor cubano de todos os tempos: Virgílio Piñera (1912-1979). Segundo Padura, Piñera pode ser equiparado a Borges, Cortázar e Lesama Lima. É preciso conferir.
Poeta, romancista e dramaturgo, Piñera escreveu e publicou até ser proscrito pela burocracia cultural cubana dos anos 70. Padura conta que isso ocorreu nos últimos dez anos da vida de Piñera em Havana. Seus livros não eram mais publicados, suas peças impedidas de serem montadas e seu nome não podia sequer ser mencionado.
O reconhecimento tardio de Piñera como escritor importante para a literatura cubana ocorreu por ocasião dos 100 anos de seu nascimento. Todo o passado sombrio ficou para a história.
Padura admite, no entanto, que esse desatino talvez tenha sido criado por ele mesmo, como se fosse um destino a ser cumprido a todo custo. Em “cubano” isso se chama “estar salgado” (estar salado), como nas tragédias gregas.
“Piñera empregava doses perigosas, mas precisas de absurdo, maldade, ironia, humor e o mais vulgar e ousado realismo”, diz Padura, para concluir: “Em qualquer sociedade o diferente será esmagado”.
Alguns dos escritos de Piñera, como poeta: La isla en peso (1943); como romancista: A carne de René (1952) e Pequeñas maniobras (1963); como dramaturgo: a revolucionária peça Electra Garrigáo (1948), Jesús (1956), Dos viejos Pánicos (1968), este, um drama nada complacente com as sociedades em que viveu.
Com a leitura do livro de Padura ficamos conhecendo um pouco da autobiografia de Piñera: “Nem bem cheguei à vida descobri três coisas bastante sujas das quais nunca pude me livrar. Aprendi que era pobre, homossexual e que gostava de arte. A primeira descobri porque um dia me disseram que não havia nada para o almoço; a segunda quando um belo dia senti o sexo de um dos meus muitos tios debaixo da calça e o terceiro quando ouvi uma prima cantando o brinde da Traviata”.
Por tudo isso, e muito mais, vale a leitura deste Água por todos os lados, de Leonardo Padura.
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Serviço:
Título da obra: Água por todos os lados
Autor: Leonardo Padura
Tradução: Monica Stahel
Editora: Boitempo