"A vida é de quem se atreve a viver".


Waleska: "Meu processo de criação não passa de um constante e duro embate entre a figura, seu significado e o espaço. Mas nunca é uma coisa deslocada da minha vida, das minhas questões."
Waleska Reuter: “Minhas obras não são feitas para provocar, mas é o que sempre acontece.”

Romário Schettino –

Brasília – A artista plástica Waleska Reuter, primeiro lugar no II Salão Mestre D´Armas, em Planaltina-DF-2019, concedeu entrevista exclusiva ao site www.brasiliarios.com Aqui ela fala de seu trabalho, de suas inquietações estéticas, angústias, frustrações e esperanças.

O trabalho premiado é uma performance (veja o vídeo neste site) em que Waleska, empunhando uma motosserra, destrói sua própria obra. A artista entra em cena vestida com uma roupa laranja, como uma operária, trazendo nas costas os dizeres: “Isto não é uma obra de arte”. Por mais óbvio que possa parecer à primeira vista, a performance revela uma alta dose de sensibilidade, coragem e disposição para encarar as críticas e a realidade.

Ao ser perguntada se já sentiu algum tipo de censura por parte de setores conservadores, ela disse: “Na verdade a opinião e o incômodo previsíveis vindo do que você chama de conservadores nunca me incomodaram mais do que daqueles que vêm da parte dos denominados progressistas, afinal são esses que sempre tentam enquadrar meu trabalho e até ridicularizá-lo, de uma forma sofisticada, eu sei, mas certamente tentando desqualifica-lo”.

Mas a experiência e a criatividade dão a essa artista segurança para dizer como enxerga o mundo e, sobretudo, como enfrentar as dificuldades. Waleska Reuter nasceu em Linhares (ES), mas mora atualmente em Brasília. É graduada em artes visuais pela Universidade de Brasília e já participou de mostras coletivas na Casa de Cultura da América Latina, no Museu Nacional da República, no Espaço Cultural 508 Sul (mais informações sobre seu currículo ao final desta entrevista). Em 2014, foi indicada ao Prêmio PiPa, e em 2019 participou da série Um.Artista, exibida pelo Canal Arte 1, da BandNews. 

A seguir, trechos principais da entrevista:

Com sua performance "Isto não é uma obra de arte" você ganhou o primeiro prêmio do Salão Mestre D'Armas de Arte Contemporânea. Como se deu o processo de elaboração conceitual deste projeto?

Meu processo de criação não passa de um constante e duro embate entre a figura, seu significado e o espaço. Mas nunca é uma coisa deslocada da minha vida, das minhas questões. Talvez a frustração,  na verdade, seja o sentimento constante na minha criação, existe sempre o desejo de romper com a ordem. Tudo começou quando decidi participar do Salão de Planaltina e parti para a elaboração da escultura denominada Curto e Grosso, que foi pensada em termos de fazer algo direto, tosco, quase de mau gosto. Acontece que, em determinado momento, comecei a me questionar a respeito do que iria significar apresentar mais uma escultura dentro do que podemos chamar de ‘meu pequeno bestiário’, isso relacionado ao já conhecido conjunto de obras que criei. Pensei no próprio sentido da obra de arte, ou melhor, na sua ausência de sentido. Assim, diante desse momento de frustração em que eu me questionava sobre o que vem a ser uma obra de arte, e me deparando com a falta de sentido da arte em geral, isso sem falar na minha inserção neste tal mercado de arte, foi que surgiu a ideia, foi aí que me veio a imagem da destruição da obra por completo, do seu aniquilamento. O lado performer do meu trabalho é recente: na verdade, a primeira performance aconteceu poucas semanas antes de participar do edital do Mestre D'armas, e então a ideia de entrar com uma ação sobre essa escultura que criei caiu com uma luva. A questão colocada por Magritte na sua obra “Isto Não É Um Cachimbo”, em que expõe de maneira constrangedora o que é a representação, e a própria mentira que é a obra de arte como simulacro da realidade, deram para mim o estalo para entender que eu precisava fazer algo de verdade, algo mais agressivo mesmo. Eu precisava expor a todos minha situação de frustração, e a destruição de uma obra feita por minhas próprias mãos passou a ser fundamental, um processo que durou dias e dias e que estava me dando muito trabalho. Naquele momento, era tudo ou nada, eu precisava saber o que era destruir. A sensação foi como pular de um edifício de 50 andares, quando você não sabe se é um pássaro que voa, ou um suicida lançando seu corpo no espaço. Uma vertigem.

Os inúmeros questionamentos e provocações que você transmite ao público com a sua obra devem ter incomodado bastante os conservadores. Você já teve problemas com algum tipo de censura?

Eu não crio trabalhos pensando em provocar, mas é o que acontece em alguns casos, aliás todos (risos). Meu trabalho tem sempre um caráter rigoroso, formalmente simples onde uma única alteração transforma o objeto, no caso dos manequins [a obra premiada é uma intervenção da artista em um manequim]. Mas na verdade a opinião e o incômodo previsíveis vindo do que você chama de conservadores nunca me incomodaram mais do que daqueles que vêm da parte dos denominados progressistas, afinal são esses que sempre tentam enquadrar meu trabalho e até ridicularizá-lo, de uma forma sofisticada, eu sei, mas buscando sempre desqualifica-lo. Meu trabalho tem sido esse desafio para mim e para todos que tentam classificá-lo, mas embora enfrente preconceitos, o interesse por minha obra já partiu de um mecanismo de colecionismo público, o Museu Nacional da República, que possui duas obras minhas em seu acervo. Deixo aqui registrada a ocasião em que uma senhora entrou no Museu da República e ao se deparar com um dos meus bebês, ela imediatamente começou a reagir de modo histérico, falando sem parar as coisas mais obscenas, e disse que aquilo não poderia ficar ali. A situação foi logo solucionada pelo diretor do museu, que correu ao local para acalmar a tal senhora e explicar melhor a obra, e tudo foi resolvido.

A escultura decepada, esquartejada, é um choque. Como você percebeu a reação das pessoas diante de cena tão impactante?

Passei vários dias empenhada em desenvolver a escultura, e foi curioso ter todo esse esforço para concluí-la depois de ter decidido acabar com ela. Estranha a sensação, mas quanto mais a peça ia sendo finalizada, mais eu queria que ficasse perfeita. Era como uma mesa a ser arrumada para um banquete. Sabe, acho que desta vez eu me fiz entender de uma maneira como nunca tinha acontecido antes. Confesso que quando vi a obra pronta achei tão bonita que quase desisti, ainda mais depois de semanas de trabalho para desenvolvê-la. Além disso, aprender a manejar a motosserra me fez sentir como num daqueles filmes de preparação ninja: lidar com aquela máquina não foi fácil, mas finalmente consegui fazer dela minha parceira de trabalho.

Pensando bem, acho que o impacto se deu não pela destruição em si, mas pela forma como ela ocorreu. Creio que a decisão do ato, e, porque não dizer, a sua beleza estética, é o que na verdade chocou. O momento que mais ficou na minha memória foi exatamente depois que consegui cortar o primeiro pedaço, o pênis: as pessoas gritaram! Por essa eu não esperava. Depois o que se seguiu foi um silêncio estranho, uma tensão no ar, percebi que as pessoas não conseguiam tirar os olhos de mim. O barulho da máquina e também o perigo que ela representava com certeza não passaram despercebidos do público, sem falar daquele líquido escuro escorrendo do objeto à medida que o corpo era cortado e que se assemelhava a sangue, isso também deve ter sido assustador para quem observava. Acho que foi um alívio quando a máquina parou.

Na cena performática, o elemento sexual e a censura estão juntos no mesmo espaço temporal e físico para mostrar a rejeição à obra de arte. Você quis deixar as pessoas pensando no significado da violência em suas vidas e na arte? Essas violências se misturam?

A violência e a condição carnal do ser humano sempre foi um tema da arte, afinal quando você está diante da Lição de Anatomia, de van Mierevelt ou mesmo A Queda dos Anjos Rebeldes, de Pieter Bruegel, o que você vê é o evisceramento e um clima sinistro de aflição. E o sexo sempre esteve presente desde as esculturas gregas e até nos clássicos de cunho religioso, espalhados pelas igrejas, monumentos e museus do mundo. Viver é violento, mesmo a cultura POP aborda a violência em sua linguagem nos vídeo games, sem falar nos filmes. Eu amo a agressividade de Tarantino, mas também adoro a sutileza de Fassbinder quando transborda de sadismo em Martha, obra de extrema beleza e profundidade psicológica. Mas hoje a coisa está tão banalizada que já não basta, nos filmes, você esfaquear alguém, é preciso um corpo ser massacrado diante de nossos olhos e ver o sangue jorrar, isso sem falar nos assassinatos que se tornam algo corriqueiro diante da imensa quantidade de informação a que nos submetemos diariamente na mídia. Assim, achei importante expor o outro à minha própria experiência de dor por meio do aniquilamento de uma obra que me representasse naquele momento.  Minha pesquisa passou por coisas duras como pesquisar as execuções rigorosas de cristãos feitos pelos membros do Estado Islâmico, suas roupas, suas atitudes, a forma estilística com que praticam seus atos de hiperviolência, e também me lembrei da tática dos meninos que fazem ataques em escolas, tanto aqui quanto nos EUA. Hoje destruir por destruir não tem significado, o espantoso em tudo isso é que eles buscam eternizar e até trazer um sentido de arte para a violência. E meu ato não tem censura alguma, sou livre. A censura não está ali, mas na cabeça do censor de qualquer espécie e o que posso dizer é que tudo está misturado, sim. É no caos que eu habito.

Como você se vê na cena da arte atual, que sofre tantos ataques contra a liberdade de expressão?

Você está falando com alguém que sofre tentativas de censura há muito tempo, isso para mim não é nenhuma novidade. No meu caso em especial já tive experiências de espectadores com atitude de censura histérica. Cada época tem seu tipo de censura, o que une tudo isto é a tentativa de reduzir tudo a uma visão tacanha e tribal. Hoje o que vemos na internet é todo mundo de certa forma sendo um censor do outro, se você tem um pensamento que vá contra a temática tida como padrão, você é logo olhado com desconfiança, mesmo entre seus amigos. E eu sou o tipo de pessoa que precisa de asas, quanto mais angustiada, mais intensidade adquiro para me expressar. Tipo bicho acuado que se enche de força para atacar. O curioso é que justo agora uma artista como eu mereça algum destaque neste ambiente atual, talvez minha temática e minha obra seja algo necessário para esse momento, vai saber.

O primeiro prêmio no Mestre D'Armas reconhece a sua obra e a legitima institucionalmente. Você acha que este circuito institucional pode influenciar de alguma maneira a perda da ousadia em seus futuros projetos?

Eu ainda estou surpresa de como uma performance dessas pôde ter chegado até onde chegou, nem por um minuto imaginei que o júri iria premiar um tipo de arte de natureza tão imaterial como essa, que oferecesse apenas restos como prova final. O que está exposto no museu são os pedaços cortados da escultura e o vídeo da ação,  na verdade nem acreditei quando recebi o prêmio, achei que nem mesmo classificada seria. Eu nunca penso no último trabalho que fiz, mas me interesso imensamente nos projetos que estou para fazer e fico realmente obcecada até ele estar pronto. Sempre foi assim, e não é por causa de um prêmio que vai ficar diferente. Eu realmente não estou preocupada em ser ousada ou não, isso é uma consequência, e o fato de ser uma artista que é considerada dessa forma é um risco, mas um risco que proponho e que gosto de correr. Meus futuros projetos já estavam na minha cabeça antes de tudo isso, afinal um artista só tem um dia após o outro, o que vai acontecer daqui pra frente, não sei. Não me coloco na categoria de ousada, mas de inquieta.

Você se considera neste momento da carreira uma artista presa ao nicho das questões de gênero? Qual a importância desse aspecto na obra de arte?

Está aí algo que nunca esteve no campo das minhas preocupações na hora de criar meus trabalhos, de fato acho que não é o lugar de fala da minha obra. Um amigo acabou de visitar em Nova York a exposição Camp: Notes on Fashion no Metropolitan, e me ligou de imediato porque disse que finalmente entendeu minha obra. Fui entender o que é, e de fato finalmente me identifiquei com a tendência que foi analisada inicialmente por Susan Sontag que diz que “muitas coisas nesse mundo não têm nome; e muitas coisas, mesmo que tenham nome, nunca foram definidas. Uma delas é a sensibilidade.” Sim, talvez eu esteja mesmo à procura disso, de um campo de sensibilidade mais amplo, que ainda está para ser definido. Porque em Camp existe uma seriedade que falha, e eu sou a falha, aquilo que não deu certo. Este deboche, que busca na obra clássica sua matriz para alterá-la de forma exagerada e irônica vem definir meu trabalho muito mais do que questões de gênero, é a sensibilidade do absurdo. Eu trabalho nesta falha, naquilo que deu errado mas ao mesmo tempo é rigoroso e divertido. Lógico que meu amor pela pista de dança, pela noite, por meus amigos gays, pelo exagero e amor à extravagância me fazem ser quem sou, mas é algo ligado ao Pop. Sou talvez a mulher mais bicha que você pode conhecer (risos). "Ser natural é uma postura muito difícil." [An Ideal Husband, Oscar Wilde].

Sua peças se utilizam da beleza do estilo clássico tradicional para as introduções de interferências com exageros surreais de narrativas contemporâneas. Isto é proposital?

Totalmente proposital, é aí que se revela o caráter Camp do meu trabalho. Sou muito ligada à moda, e se fosse definir minha obra sob este aspecto eu diria que a vida é curta demais para usar apenas o básico. Utilizar o clássico como ponto de partida, para mim, faz total sentido, porque com isso se estabelece o vínculo entre culturas pré-existentes e o ser contemporâneo confuso e caótico. Uma espécie de reinvenção da escultura foi o que me passou pela cabeça, um modo de devolver a aura a um objeto, porém, feito de forma crítica, irônica, exagerada, sempre abundante de duplo sentido.

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O Salão

O II Salão Mestre D’Armas – Arte Contemporânea é realizado pela Associação dos Amigos do Centro Histórico de Planaltina-DF (AACHP) e conta com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC/DF)  e apoio do Instituto Bem Cultural e da Rádio Utopia FM, de Planaltina.

Serviço:

Exposição: II Salão Mestre D'Armas de Arte Contemporânea

Local: Museu Histórico e Artístico de Planaltina-DF

Endereço: Setor Tradicional – Praça Salviano Guimarães, Quadra 57.

Aberto ao público de quarta a domingo - das 8h às 12h e das 14h às 18h.

Informações e agendamento de visitas – (61) 99279-0003 com Simone

Temporada: até 21 de julho de 2019

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Outras participações da artista:

Walesca Reuter participou de diversas mostras na cidade, entre as quais

Libido Dominandi, na Casa de Cultura da América Latina;  O Círculo, no Museu Nacional da República (2007); Arqueologia do Plástico, no Espaço Piloto (2008);  Galeria de Nulidades, no Espaço Cultural STJ; Mirada Desobediente - do Infantil ao Pueril, no Espaço Cultural 508 Sul (2010); 1922 Semana Sísmica - Correspondências Modernas, no Museu Nacional dos Correios (2012).

SEUmuSEU Expoexperimento (2013), e  Melhor de 3, no Museu Nacional da República; Eróticas, na Galeria deCurators (2014);  Quarto Escuro, na Alfinete Galeria; Ondeandaaonda, no Museu Nacional da República ; Ciclo Bicho-Bicha, na Galeria deCurators;  Ocupação 2.0, no Elefante Centro Cultural (2015);  Ondeandaaonda II (2016); Não Matarás (2017), no Museu Nacional da República (2016).

Projeto Fuga, no Atelier de Valéria Pena Costa (2017), Ondeandaaonda III, Espaço Cultural Renato Russo (2018), performance em homenagem a Eiko Hanashiro, na Galeria deCurators.

Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Vera Brant de Arte Contemporânea (2016) e participou do grupo de curadores do II Prêmio Vera Brant, em 2019.

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