"A vida é de quem se atreve a viver".


O Golpe de 64 não pode ser objeto de comemoração por nenhum ser humano capaz de sentir compaixão pelos outros
55 Anos do Golpe – Meus medos e o terror de Estado

Romário Schettino -

Por falar em Golpe de 1964 e comemorações em quartéis, publico aqui um relato produzido por mim em 2014, quando se completaram 50 anos desse mesmo golpe. Como o atual governo federal tenta “desconstruir” a nossa história, republico meu testemunho.

Meu nome foi incluído num relatório escrito por um representante do regime militar brasileiro e mostra como a desfaçatez, a mentira, o preconceito, a injúria, a difamação e a calúnia faziam parte da estratégia de desacreditar aqueles que resistiam à ditadura. Tudo isso aliado ao sequestro, prisão, tortura e assassinato.

O documento qualificado como “confidencial” foi encontrado em um cofre da reitoria da UnB pelo ex-reitor e ex-senador Cristovam Buarque e tem a assinatura do General de Divisão Olavo Vianna Moog. Ali Moog descreve, em minúcias, as dezenas de prisões arbitrárias produzidas em pleno governo Garrastazu Médici.

A repressão militar na UnB

Aconteceu no dia 15 de junho de 1973, 19h, quando eu deixava meu trabalho no Banco Central do Brasil, no Edifício União, Setor Comercial Sul, em Brasília. Eu, concursado, ocupava o cargo de escriturário. Tinha 22 anos.

No estacionamento, me esperavam vários policiais à paisana, fortemente armados com metralhadoras. Do carro da Polícia Federal, uma C 14, parada ao lado do meu fusquinha, desceram homens com a missão de me prender. Encapuzado, colocado no fundo do meu fusca, fui sequestrado e levado para lugares que só pude identificar muito tempo depois.

Torturado com choques elétricos nos órgãos genitais, espancado, seviciado durante mais de uma semana, acabei sendo solto vinte e cinco dias depois do sequestro - sem formalização de nenhuma acusação. Só deixaram as marcas da violência e da covardia.

Houve um momento em que não acreditei sair vivo da prisão. Após uma série de espancamentos e choques elétricos, tive um desmaio. Pedia água, mas fui informado que não deveria beber água porque poderia ocorrer uma eletrólise e a morte era certa. Poupado neste momento, provavelmente por orientação médica (ou será científica?), fui levado a uma cela do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), localizado no Setor Militar de Brasília, onde tive uma crise renal. Depois de muito gritar por socorro fui atendido por um médico que me aplicou uma injeção de buscopan na veia. Nesse dia eu ouvi muitos gritos e choros nas celas vizinhas, acompanhados de sons de bordoadas de cassetetes.

Os lugares por onde andei só puderam ser identificados por alguns dos sinais colhidos durante a prisão. Subsolo do Ministério do Exército, na Esplanada dos Ministérios, Polícia Federal, PIC (...). Nesses lugares eu pude identificar as persianas do ministério (todas iguais até hoje), as celas individuais e os sons das cornetas anunciando a entrada e saída dos oficiais militares no PIC.

Meus óculos de míope foram recolhidos e só entregues no final do sequestro 25 dias depois. Um carro da polícia me abandonou no cerrado existente no que é hoje a SQN 114/115 Norte. Avisado para que me dirigisse ao estacionamento do supermercado da SAB na 312 Norte (hoje é o Carrefour Bairro) encontrei meu carro. Dentro dele achei duas placas frias, usadas para outras prisões igualmente ilegais, clandestinas e arbitrárias.

A violência brutal contribuiu para a interrupção de minha vida profissional e estudantil. Perdi o emprego no Banco Central e fui jubilado do curso de História da UnB. Na volta ao Brasil em 1975, dois anos depois de auto-exilado na França, consegui me reinscrever no curso de jornalismo, mas no emprego nunca mais consegui ser reintegrado.

Apenas os torturadores, policiais e militares, anônimos e ocultos para mim, sabem o que houve naquelas mais de três semanas de terror. Tudo foi planejado para que não houvesse testemunhas oculares, ninguém viu minha prisão nem a soltura, nem as sessões de tortura. O único registro dessas prisões é o Relatório Olavo Vianna Moog, que pode ser encontrado no Arquivo Nacional da União sobre a ditadura.

São 31 páginas do Ministério do Exército classificadas de “confidencial”, tendo como assunto “infiltração subversiva no meio universitário em Brasília, produzido pelo CMP do 11º R.N., distribuídas para o CIE do I, II, III e IV Exército e outros órgãos militares, com o nome de Relatório Especial da Informação Nº 3/73”.

Quem tiver paciência, e estômago, para ler esse relatório vai encontrar muita semelhança com o que está acontecendo atualmente no país. Parece um pesadelo.

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