"A vida é de quem se atreve a viver".


A saltos altos

Angélica Torres –

Após assistir a dois vídeos, ontem, o de Daniel Silveira enaltecendo os de pele branca “caucasiana”, o outro, hoje, sobre o descalabro das injustiças cometidas com os negros brasileiros, extraído da reportagem do último Fantástico (até a TV Globo se posicionando sobre o assunto...), me lembrei de um episódio nada agradável que vivi, mas digno de registro, o que fiz num depoimento nunca publicado. 

A blogosfera e a mídia independente apenas começavam a tomar corpo na época; o jornalismo ainda se concentrava na imprensa tradicional. Assim, arquivei o texto no computador e na memória o fato, conhecido só entre a família. Nas poucas vezes que depois o reli, sentia impulso de achar um espaço onde publicá-lo. Pois eis que chega a hora, porque, se não se pode mudar a tenebrosa realidade atual, ao menos expressar o lado que se toma nas encruzilhadas medonhas da História, ainda se pode.

Minha filha sofreu dois assaltos de carro, no mesmo dia, no espaço de dois meses. Parece cabalístico, coisa do mundo dos ocultistas, mas, na verdade, a vala é bem mais embaixo. Entra-se num submundo interessante pra quem gosta de ler Rubem Fonseca; já, vivê-lo como personagem são outros quinhentos.

Na primeira vez, encontraram o carro em uma pequena cidade vizinha, no dia seguinte ao assalto. Fomos lá recuperá-lo com gosto de prêmio na boca – amargo, é vero: o real é que passamos de pessoas a números, engrossando as estatísticas do terror. Era encarar, que outro jeito.

Para que pudéssemos levar o carro era preciso que ela identificasse o agressor. Deram-lhe um álbum com fotos dos marginais procurados em toda a região. Todos na faixa entre 18 e 25 anos, mulatos mais que negros, e ele, o “Marquinhos”, chamado assim mesmo, com intimidade pelos policiais da delegacia, estava estampado naquela galeria, e ela o reconheceu.

A delegada, uma gata de 27 anos, loura de verdade, magrinha, feminina, mas machona, entende?, elegante num tailleur preto e calçando um clássico scarpin com saltos agulha de 10cm, mostrava um domínio de bestificar sobre os marmanjos subalternos dela. Mandou que fossem atrás do garoto e determinou que não sairíamos sem que minha filha o identificasse por trás da porta com visor, que a protegia de ser vista por ele.

Armaram uma arapuca, auxiliados pelo “amigo” que ajudou Marquinhos no assalto e, para absoluto constrangimento nosso e impressão de que virávamos personagens de um filme do Afonso Brazza, do tipo Gringo não perdoa, mata, chegam pouco depois com o assaltante debaixo de tapões. Nós duas, implorando para acordar daquele pesadelo, escutamos os gritos, vindos da outra sala por onde entraram com ele.

Pedi com coração de mãe que não batessem no garoto e enquanto esperávamos o final da operação da “caça”, assuntei a carteira – da grife Redley –, encontrada pelos policiais que acharam o carro, e descobri que Marquinhos fazia aniversário naquele exato dia. Filho de mãe solteira, 25 anos, fichado como ladrão, era visto na delegacia como um sujeito que gostava de se vestir bem, ter carro e grana pra sair com as namoradas.

Marquinhos, de nome próprio composto e dois sobrenomes que soavam como os de uma família de classe média, era um playboy do mundo do crime, sem registros, ainda, de violência às vítimas, “mas que precisa apanhar, sim, porque é safado, não tem que ter pena, não; eu mesma já dei uns tapas na cara dele e ele não aprende”. A fala é da delegada bonita, valentona, certamente saída de uma fantasia tecida na plateia de um filme de Rambo.

Senti pena e não desprezo ou raiva daquele menino, capturado pelas ambições de uma sociedade consumista, mas que, com isso, sinalizava o claro desejo de fazer parte da “casta de privilegiados”, com direito ao básico da dignidade – educação, trabalho, moradia decentes –, antes do plus: a permissão à vaidade.

Bom, Marquinhos acabou entrando para a história da grande galhofa da minha própria história. O episódio rendeu pano pra manga e fomos no dia seguinte à delegacia central, no Plano Piloto, onde ele ficaria preso até ir a julgamento, pensávamos. Não é o caso de discutir aqui se Paulo Coelho vale um alquimista que transforma palavras em rios de cédulas, mas, Viridiana, judaico-cristã-samaritana, lá vou eu para aquela delegacia com o exemplar de um livro dele, de leitura fácil e indução a sonhos adolescentes, e um cartão com dedicatória edificante, mas sem moralismos, para dar de aniversário ao ladrão do carro, que poderia lê-lo enquanto estivesse na cadeia.

Nas cinco salas em que entramos e por onde correu o processo passei por louca de romance. “Mas como é que a senhora pensa que a falta de escolarização, emprego, condição de vida e inexistência de terapeuta, missionário, curandeiro de alma, nas cadeias, é que faz aquele tipo de bicho ruim existir, dona”? E tome gozação pra cima de mim. “Malandro tem que tomar é porrada mesmo, e muita porrada, porque eles são a parte podre da sociedade, madame. Aqui não tem conserto, não”.

E se você argumenta com aqueles policiais: “Engraçado, eu sei de muito ladrão podre de rico, que é político, parente de político, empresário, que está aí levando vida muito boa, passando longe do xilindró, e será que os senhores pensam, então, que é essa a parte sadia da sociedade?”. Eles se entreolham mudos e te olham sem um pio, desconfiados, prestes a te levar, não para a cadeia junto com o ladrão do seu carro, mas para um hospício.

E se rola um segundo assalto com a mesma pessoa, no mesmo carro, no mesmo reduto e dia do mês, um mês depois do acontecido, embora por outro ladrão, então, você acha que está mesmo a ponto de baixar num hospício, porque começa a caraminholar que os policiais podem ter parte nessa história, pra poderem rir da sua cara e te provocar, tá vendo só, dona, a piedade que essa raça safada merece?

Ué, polícia pra quem? Quem precisa de polícia?

Moral da história: pau que nesse mundo nasce torto, porque nasce pobre e preto, tem que morrer torto mesmo e azulado de tanto apanhar e levar bala. Mau que nasce morto é mais seguro, então o extermínio é a fórmula ideal. E você, a romântica, a babaca, que sente pena de gente que é condenada a ser bicho, por abandono, por descompromisso, por calhordice da elite governante, há outro lugar nesse mundo cão pra você, que não o hospício? E isso tudo sem falar no trauma que fica na mente e no coração da vítima, que é sua própria filha.

Ah, Lula, conspira esse seu Projeto de Segurança Pública com competência, mas, sobretudo, com sensibilidade e visão humana.                                                                                     

Abril de 2002.

Bem, o que mais espanta hoje é constatar que muito se conseguiu mudar no país, de 2002 até 2013 ou 14; no entanto, a cabeça de muitos cidadãos – e não só os do bloco bolsominion! –, continua a mesma da era anterior.

Haverá alguma saída de decência para a sociedade brasileira algum dia? Alguém me diga.

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