Angélica Torres -
Foi uma feliz decisão da atriz e compositora Fernanda Cabral e do ator e videasta André Amaro a de eleger e de levar com eles para o palco o místico poeta hindu Tagore (1861 ̶ 1941).
Restrito aos círculos literários acadêmicos, seu nome pode até soar familiar para o grande público, mas poucos sabem quem de fato foi Rabindranath Tagore e raros conhecem sua literatura, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de 1913.
Inspirado nos 85 densos poemas que perfazem o seu romance O Jardineiro, o espetáculo Barca Nômade traz a poesia tagoreana ao conhecimento dos espectadores brasilienses, neste fim de semana e nos dois seguintes. Cecília Meireles, que foi grande admiradora e tradutora de sua obra, na certa, aplaudiria a escolha do casal de atores.
Entretanto, não foi com base em Cecília ou em Guilherme Figueiredo, dois de seus eminentes tradutores no Brasil, que se constituiu a versão da montagem que Brasília assistirá. Esta é resultado de um trabalho a oito mãos, desenvolvido a partir da tradução espanhola assinada por Mauro Armiño que serviu à estreia de Barca Nômade em Madri. Surgia assim uma compilação de vários dos poemas do romance, ora na íntegra, ora acasalados com outros poemas, ora subtraindo-se repetições, na busca de uma síntese discursiva contemporânea para o rigor da textura poética dos monólogos e diálogos do texto original de Tagore.
Nesse processo, André Amaro e Fernanda Cabral contaram com a colaboração do dramaturgo brasiliense Maurício Witczak e da diretora russa radicada na Espanha, Irina Kouberskaya, que optou por apostar em uma narrativa de intensa plasticidade cênica, como um poema visual, em tradução paralela, somando-se ao texto retrabalhado.
Irina Kouberskaya vale-se de uma vasta gama de cores exuberantes e de tons pastéis no cenário, nos figurinos, nas luzes. Tira partido da videocenografia criada por André Amaro, produzindo efeitos mágicos sobre os atores e na estética minimalista dos elementos de cena: a cortina ao fundo, um pequeno barco de madeira, a pá usada como diferentes metáforas, uma ânfora, uma pandereta, a camisa bordô do viajante (expressivamente manuseada como alegoria espanhola pela mulher solitária em devaneio frente a um touro) e todos empregados individualmente em uma cena e outra.
A pesquisa musical de Fernanda Cabral é também um recurso que faz jus a Tagore, até porque, como dramaturgo, ele se permitia um perfil próximo ao do menestrel, incluindo composições próprias nas exibições de suas peças. Fernanda cria uma trilha sonora que embasa performances de breves danças ritualísticas, arquetípicas do Oriente, mas também de gestuais dos modernos balés ocidentais, que ela e seu parceiro desempenham entre um quadro e outro da poesia falada.
Os figurinos leves, com transparências sobrepostas e adereços de flores e grinalda para os longos cabelos dela, ele quase sempre de peito nu em cena, são expedientes que ressaltam a beleza dos corpos de ambos e preparam a plateia para a contemplação do ponto alto do espetáculo: a cena em que ela cede à sedução do viajante mendicante e a misancene dos jogos de amor, como preliminares, em uma sutil referência ao Kama Sutra, instala-se com especial delicadeza e erotismo por todo o palco metamorfoseado em alcova.
Ela – De que me serviria um jardineiro? Ele – Conservaria fresca a trilha por onde andas a cada manhã e, a cada passo, os teus pés seriam abençoados pelas flores que margeiam o teu caminho. Ela – E o que desejas como recompensa? Ele – Que me dês permissão para recolher, com um beijo, o pó que porventura venha a pousar sobre os teus pés. Ela, após uma pausa – Quero que sejas o jardineiro do meu jardim...
Não haveria momento melhor para colocar o amor sob os holofotes da ribalta – ele, que não está no ar e nem tem sido objeto de um ideal de elevação à nossa autoestima no país. Também, ainda sob essa ótica do momento, não haveria autor melhor para ser tirado do ostracismo – ainda que em O Jardineiro, Tagore esteja entregue ao lirismo do personagem, que é um bodisatva, um monge andarilho misticamente apaixonado.
Isso dito, por Tagore representar a suprema expressão do escritor bengali nacionalista, crítico dos males perpetuados na Índia colonizada pelo império britânico; chegou a visitar a América Latina, interessado em compreender suas semelhanças com as da sociedade colonial indiana. Tagore se dividia, portanto, entre as duas castas superiores da humanidade, de acordo com a classificação de Krishna, descrita no Bhagavad Gîta: a do guerreiro e a do espiritualista.
Filho de um brâmane abastado, Rabindranath Tagore nasceu em Calcutá, província de Bengali, nos primórdios da era moderna (1861). Complementou seus estudos na Inglaterra e ao voltar para a Índia, cultivou uma vida de riquezas artísticas e intelectuais. Poeta e músico, pintor e ator, folclorista e educador, místico por excelência e agudo observador do comportamento humano e das estruturas sociais, traduziu ele próprio muitos de seus variados textos e canções do bengali para o inglês, esforço que lhe abriu as portas do mundo.
Ao ganhar o Nobel de Literatura, sua obra grassou por outros países europeus e latino-americanos, reunindo entre seus tantos admiradores poetas como W.B.Yeats e Ezra Pound, além da escritora argentina Victoria Ocampo. Feminista e antifascista, Ocampo recebeu-o como hóspede, em San Isidro, cidade da província de Buenos Aires, em 1924, quando, a caminho das comemorações da independência do Peru, ele adoeceu no navio. Um ano depois o poeta retribuiria à cortesia da amiga, dedicando-lhe a coletânea de poemas Purabi.
Em O Jardineiro, fonte de inspiração da peça que entra em cartaz hoje, sexta-feira, 29/3, no Espaço Renato Russo (508 Sul), o sábio, erudito, multifacetado Rabindranath Tagore parece ensejar e reforçar uma visão patriarcal típica do Oriente, na figura do viajante que implora por acolhimento na casa de uma mulher solitária e precavida contra prováveis decepções amorosas. Mas o desenlace mostra tratar-se de uma abordagem espiritualista, sob o conceito do encontro dos princípios masculino e feminino como símbolo de unidade para o alcance da sabedoria e do iluminamento.
Já o tratamento do sutil erotismo dado à peça parece vir da escola tibetana do budismo, com suas famosas imagens de budas (metonímia de homens santos) abraçados lânguida e sensualmente às suas consortes, embora também representando a mesma união acima citada.
No entanto, uma lúdica, quase cômica, coreografia do casal simulando dois cervos, coroa o espetáculo com um toque final de significativa alusão mundana, calcada em versos do último diálogo entre ambos, como estes: “Se fosse apenas uma flor redonda e pequena e doce, a arrancaria de um galho para colocá-la em seu cabelo. Mas é um coração, minha amada. (...) Meu coração não é meu, pertence a todos”.
Contudo, que o espectador interprete a mensagem da cena, assim como de todo o enredo condensado, e tire a sua própria conclusão.